Retrotopia ou os retrocessos do nosso tempo
Parece que projectamos os medos para o futuro e falamos com saudade do passado – não só o recente, antes do irromper da crise financeira, mas principalmente do mais longínquo. Em alturas de desordem, quando não parece existir confiança num rumo, podem traçar-se utopias.
Há 20 ou 30 anos não faltava quem assumisse que em 2017 nos alimentaríamos de pílulas coloridas, que iríamos de férias de Verão até à Lua, que o crescimento económico seria ilimitado, os recursos infinitos e que as desigualdades sociais se atenuariam.
Existia crença no futuro. Os traumas do fascismo e o desacreditar do comunismo, depois da queda do muro de Berlim, faziam acreditar que os modelos políticos e socioeconómicos vigentes poderiam ser melhorados e que a tecnologia nos salvaguardaria.
A partir da década de 1990, no campo cultural, que tantas vezes é reflexo e profecia do mundo, começou a perceber-se que entráramos em plena era dos “re” (reformulações, remisturas, reciclagens, revivalismos, regressos, recuperações, remakes, reedições, retrospectivas), vislumbrando-se uma certa paralisia, como se a única opção fosse voltar melancolicamente ao passado, mas ainda assim a fé no progresso parecia imparável.
Na última década esse alento foi-se. Filhos começaram a duvidar de que a sua vida seria melhor do que a dos pais. O sentimento de que as elites políticas eram incapazes de gerar mudanças foi crescendo e a desconfiança em relação ao sistema político acentuou-se. O desemprego, a precariedade e as desigualdades cresceram. Até a tecnologia começou a ser olhada com suspeita com o receio da substituição do trabalho humano por máquinas.
A descrença num futuro melhor intensificou-se com o terrorismo, a crise financeira e a estagnação económica, impondo-se uma atmosfera de incerteza e impotência, como se preservar o mínimo (emprego, educação, saúde) fosse o máximo possível. As ferramentas que no passado se revelaram eficazes para lidar com os desafios da vida individual e colectiva foram desacreditados.
Hoje parece que projectamos os medos para o futuro e falamos com saudade do passado – não só o recente, antes do irromper da crise financeira, mas principalmente do mais longínquo. Em alturas de desordem, quando não parece existir confiança num rumo, podem traçar-se utopias, esse impulso para transformar o presente através do vislumbre de um outro futuro. Mas a desilusão e o temor pelo que poderá vir aí podem levar-nos a tentar regressar a um passado selectivo, logo, idealizado, ou a algo que foi abandonado lá atrás e que se julga poder agora reparar.
Em parte é isto que é reflectido em Retrotopia, obra póstuma de Zygmunt Bauman, que morreu em Janeiro deste ano, e que também acaba por ser referido em O Grande Retrocesso, antologia de ensaios de vários autores (Bauman, Appadurai, Fancy Fraser, Zizek, Bruno Latour ou António Costa Pinto) na abordagem a algumas das grandes questões do nosso tempo (populismo, xenofobia, “Brexit” ou Trump), numa altura em que regressam gestos ditatoriais, autoritarismos ou proteccionismos nacionais.
É como se Bauman nos dissesse que uma das consequências do fim do pensamento utópico, com todos os seus riscos, mas apesar de tudo baseado numa vontade transformadora e na confiança, tivesse dado lugar agora à retrotopia, assente na desconfiança e num regresso a um passado mitificado, que nunca existiu realmente, do qual se seleccionam apenas algumas partes, numa replicação mais imaginária do que real. Deslocámos as esperanças numa sociedade melhor num futuro que ainda o não foi para um passado que não foi da forma como tentamos fazer crer, num regresso à caverna, à tribo, ao que julgamos conhecer.
O objectivo já não é conseguir uma sociedade melhor, porque consegui-lo parece uma esperança vácua, mas apenas melhorar a posição individual dentro da mesma. Vive-se numa urgência sem fim e existe quem desista de pensar o mundo ou que lhe dê jeito não o fazer, satisfeitos que o mundo lhes aconteça. Mas se a grande maioria deixou de pensar o futuro, não o fez por opção. Fê-lo porque esse horizonte não o têm. Estão vivos hoje, têm emprego e comida para os filhos, mas não sabem se o terão amanhã. A incerteza não lhes permite ver o futuro para além do imediato.
Vive-se numa espécie de eterno presente, com mais perguntas do que respostas, mais problemas do que soluções. Mas regressar ilusoriamente ao passado, seja ele qual for, não parece solução para quebrar o enguiço. É necessário encontrar outras formas de viver o tempo que temos para viver, valorizando a memória mas sem ficar preso à história, não temendo paradoxos ou o que não se conhece por inteiro, porque é nesse processo que o desejável pode ser alcançado.
Numa das últimas entrevistas, perguntaram a Bauman se este era optimista em relação ao futuro. Respondeu que era pessimista no imediato e optimista no longo prazo, reflectindo que a humanidade já passara por encruzilhadas que haviam sido superadas. É isso. Mas até que a confiança no futuro seja reposta é inegável que muitas vidas continuarão com um ponto de interrogação.