Guerreiro, carrasco e poeta, diz ele
António Barahona é poeta à margem, Monárquico e Sebastianista, politicamente muito incorrecto. E isso não tem lugar. Ou o lugar é o do coração.
António Barahona é autor de uma vastíssima obra espalhada por diversas editoras de diferentes dimensões, edições de autor, folhas volantes. Em 2016, edita dois livros. Como se se tratasse de uma urgência, antes da morte. E é, ou era. Um eco trespassa estes versos, não se pode adiar o coração, ou, recorrendo a outro poeta: “não posso,/ ainda que o grito sufoque na garganta” (A. R. Rosa, Viagem através de uma Nebulosa). Barahona publica Noite do meu Inverno e a seguir Ocarina.
Os títulos são a expressão do que está em jogo: reunião de poemas que percorrem momentos distintos, do surrealismo ao fervor religioso, ora católico, ora muçulmano, sempre absoluto, radical, furioso, fervor que não permite relativizações: o guerreiro não vacila, nem o carrasco. Trata-se de uma antologia e sucessão de poemas que o próprio seleccionou. Ocarina, por seu turno, além de ser título, ou por isso mesmo, é o nome de um instrumento, de sopro. Em subtítulo, ou na segunda página: “o sentido da vida é só cantar (suma poética)”. Sendo que o som, o ritmo, a rima, a musicalidade entranha de raiz a escrita deste autor, estão lá antes de estarem nas palavras que nascem e se evolam já impregnadas de Deus. Do Verbo corânico. As coisas, todas elas, desde a pedra, antes de se tornarem poema já irradiam sons, até o silêncio, o inaudível devem canto.
À laia de prefácio que revela: “a conclusão dêste livro (uma e una poesia em setenta poemas) foi-me imposta por uma presença invisível, talvez a de um dos 70000 Anjos que nos rodeiam, ou, em particular, a presença dos dois principais que nos assistem, um sentado em cada ombro; ou talvez a conclusão tenha sido imposta pelo Anjo da morte. A consciência poético religiosa deixa tudo em aberto e arriscado” (Ocarina). Deus é desconhecido e íntimo. Consciência poético-religiosa subsume tudo o que Barahona escreve e é, “um poetaabsoluto” que se apodera do som. Essa consciência ainda faz dele um poeta não marginal, mas à margem, Monárquico e Sebastianista, politicamente muito incorrecto. E isso não tem lugar. Ou o lugar é o do coração. Não cabe nem na Esquerda, nem na Direita, simplesmente um grande poeta, antigo. Absolutamente livre, até porque o poeta não visa a liberdade, ele é por natureza livre, mas sim a libertação que o poema é, e que o poeta visa, e isso, segundo Barahona, tem a ver com o espírito e não um qualquer sistema social. Crente no deus único e não no progresso, nem nos valores tão apregoados pela democracia que secundariza.
Comece-se pela ortografia, peculiar, arbitrária, fenómeno para que o autor em cada livro nos alerta, inspirada no critério biológico, estético e prosódico de Pascoaes. Poeta sempre presente, como Camões, na sua poesia e no seu ser. Pátria Minha (Averno, 2014) queria-se como a continuação de Camões e Pessoa. Mesmo antes do Acordo Ortográfico, essa aberração pornográfica (sic), o poeta escreve como quer, cria uma espécie fisionomia ortográfica pessoal, da palavra escrita. Se bem que haja aspectos políticos reiteradamente abordados: na Europa, a ausência de valores em paralelo com a ausência de Deus que já nem é sentida, “só se sente a presença do dinheiro, (...)/ Acelera-se o fim agonizante(...) Europa repugnante e sem vergonha,/irmanada no lucro sem fraternidade/ foco corrupto de doença grave/ que torna a morte estranha” (Ocarina).
O poeta sobrepõe poesia e religião, leia-se religião islâmica, na sua vertente sufista, mística, esotérica (em As Grandes Ondas: “Deus ordenou ao Poeta que imitasse o Sufi e mais que sintonizasse a linguagem dos pássaros.”). Irresistível pegar na gravação de uma entrevista acessível no Youtube e que diz essa margem, entre o riso contagiante e provocador de garoto e o voo de uma rola branca (série Arquipélago - Ep.2) cuja morte há-de ser tema de dois ou três poemas pungentes, muito belos. Vale a pena ouvir: “Sou um heterodoxo, submisso ao Deus único, /discípulo do Velho da Montanha,:/o meu maior prazer é cortar cabeças (felizmente em imaginação), /na paz silente do dever cumprido/ no som, que só no som isto acontece/ Imaginação em sol (felizmente). // Sou um heterodoxo radical e rigoroso/com múltiplas raízes na palavra matemática/ (exactamente colocada no sítio da ferida /cada vez mais profunda) e áspera sabedoria/ de saber que não se sabe nada e que só a fé nos salva/ (livrai-nos Senhor, da crença e dai-nos a fé de cada dia)/ em maviosa orthografia fora de moda.”
E a fé é totalitária, absoluta, sem exterior nem resto, induz à Guerra Santa, tantas vezes nomeada, em que contra o adverso parte, armado de palavras e cachimbo.
O poema, permeável ao som fundamental, “o som do Livro icónico em versículos,/ o som de todos os Nomes de Deus,(...) o Som dos sons invictos.”. A poesia torna presente esse mistério invisível. Mistério que fica preso, que se suspende no paradoxo, da multiplicação de paradoxos de que esta poesia se tece. Como poucos, António Barahona domina a prosódia. Através de paralelismos, repetição trabalhada de sons, arte das sinestesias e mestria no uso das figuras. Acima de tudo sensível ao ritmo que a poesia é, ao som que emana de cada e de todas as peças do mundo, da conjugação das palavras. Isto é, a reverberação do estar-aí de Deus. É a imaginação do som que nos salva. Então o poema é como oração, coincide.
O amor permanece a pedra de toque. Soberano como a fé. A missão do poeta continua a ser a de “restabelecer o culto da Mulher, à luz de Deus, mediante o véu e o pudor” (A Noite do Meu Inverno). As de hoje terão perdido algum encanto. Tendo sido música da vida, “dor/ de castidade em f´rida”, hoje, “feministas e toscas//.”ausentam-se do sagrado do trajar”(Ocarina). Nunca saberemos se o poeta é cúmplice, ou não, de uma história que conta: a da tristeza de um amigo cuja primeira mulher se quis divorciar apenas porque ele teria contraído segundas núpcias. Magníficos alguns dos poemas de amor nestes dois seus últimos livros. Extremos, desesperados. Só o Amor pode sobrepor-se ao Estudo. O Desejo de “refazer-te de sangue de amor louco (...) aberta ao tesão que quer entrar/ p’la tua alma p’ra se vir/ e sorver, nesse orgasmo, o elixir/ d’eternamente amar”. (Ocarina). O campo semântico do sangue e do fogo são recorrentes. O Amor, contra a Morte, que povoa este livro, não sem algum sentido de humor: o último poema - “Vou sentar-me e reflectir, porque não há/ mais nada a fazer. (Não esquecer de rezar,/ sobre tapete turco, as orações em árabe)./Acendo o meu cachimbo e deito mel no chá./ Confirmo confiança absoluta em Allah.:”
E atenção, prestes a sair “Só o som põe si só”, quarto tomo desta suma poética.