O fabuloso mundo kitsch de Ondina Pires

São centenas as lembranças de Fátima que a artista guarda na sua casa e que revela agora no livro Fátima Kitsch.

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O fabuloso mundo Kitsch de Ondina Pires Sibila Lind

Já dizia o cineasta americano John Waters que “para ter mau gosto, primeiro há que se ter muito, muito bom gosto”. Mas, no que toca à estética kitsch, gostos não se discutem. Do estranho ao sentimental, do vulgar ao cómico, a verdade é que ninguém passa indiferente. Muito menos Ondina Pires, de 55 anos, cujo percurso na música a liga a nomes como Pop Dell’Arte, Ezra Pound & A Loucura ou Great Lesbian Show.

Ondina faz parte do grupo de pessoas aficionadas por esse tipo de objectos controversos e lançou no dia 6 de Maio o livro Fátima Kitsch, pela editora Fronteira do Caos, repleto de imagens de souvenirs e lembranças de Fátima, a maior parte da sua colecção pessoal. Quando se entra na casa de Ondina, é impossível não reparar na quantidade de objectos e miniaturas que preenchem os móveis. Desde brinquedos, sabonetes, jogos de tabuleiro, livros e outras curiosidades — como uma caixinha antiga de aparos e umas aguarelas da década de 60 com figuras de animais em relevo — comprados em antigas fábricas portuguesas e drogarias que já desapareceram. Numa das vitrinas do hall, carregada de brinquedos, está a miniatura de um macaco, numa pose como se estivesse a tocar piano. “É o Liberace da macacada”, brinca Ondina, que organiza os bonecos de forma a construir uma história.

Os objectos religiosos vão saltando à vista, mas é no quarto que a colecção — ou o “ajuntamento”, como Ondina prefere — de centenas de souvenirs e lembranças de Fátima se encontram, guardados numa vitrina de vidro com quatro estantes, todas elas tão preenchidas quanto as lojas das pracetas de Fátima. Nem todos os objectos estão aqui. Alguns estão guardados na arrecadação por falta de espaço, mas há um objecto específico que Ondina recebeu de um amigo, na brincadeira, e que se recusa a mostrar: um corta-unhas. “Devemos considerar que no kitsch não há julgamentos morais nem estéticos, mas acredito que às vezes eles têm de existir. Há o kitsch de luxo e o kitsch de lixo”, diz Ondina. “Tenho algumas peças mesmo feias e o corta-unhas é uma delas. É um objecto dos finais dos anos 80 onde a representação de Nossa Senhora é grosseira e está aplicada num objecto que não é minimamente digno.” As latas com ar de Fátima e uma representação em gesso de um dos pastorinhos, Jacinta, são outros dos objectos que prefere manter fora da vitrina. “Na parte documental, histórica, há sempre o bom e o mau, mas essas, a nível da perfeição estética, são desagradáveis.”

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Sibila Lind

Ondina começou a acumular objectos religiosos quando encontrava, entre miniaturas de brinquedos de plástico, a figura pequena de uma Nossa Senhora ou um santinho antigo que lhe chamavam a atenção. A primeira recordação de Fátima que recebeu, tinha ainda cinco anos, foi-lhe oferecida pela tia. É uma televisão vermelha, do tamanho de um polegar, onde se podia ver várias imagens do santuário e dos três pastorinhos como uma espécie de apresentação de diapositivos. Ondina guardou-a até hoje. Acredita que este impulso de acumular objectos se deve ao facto de na sua infância ter tido poucas coisas. “Lembro-me de ver os meus pais a cochicharem sobre como é que iam juntar alguns tostões para me comprar um brinquedo, dos mais baratos, para eu ter qualquer coisa no sapatinho de Natal.” Só quando atingiu uma certa estabilidade financeira, no final da adolescência, é que começou a adquirir os objectos e a tornar a sua casa numa espécie de museu.

As visitas a Fátima — não ao santuário mas às lojas e barracas à sua volta — fascinavam-na. Em conversa com um amigo, Ondina comentava os objectos peculiares que encontrava nesses espaços — alguns ridículos, outros encantadores, e alguns que, ao estarem mal pintados, tinham a sua graça. Foi em 2006 que surgiu a ideia de escrever o livro sobre o imaginário iconográfico kitsch associado aos fenómenos religiosos de Fátima. “Queria compreender o porquê daquele esparrame de lojas e quinquilharia na cidade de Fátima e como é que a imagem de Nossa Senhora de Fátima era aproveitada do ponto de vista comercial.” Ondina começou a levantar várias questões aos comerciantes e lojistas, mas para as quais não conseguia respostas. “Por que é que numas peças apareciam as três pombas? Por que é que a Nossa Senhora aparece sem coroa e outras vezes com uma auréola? O que é que está por detrás destas representações comerciais?” Foram vários anos de pesquisa — com uma pausa pelo meio — onde a procura pela definição de kitsch começou a ocupar algum espaço.

Bola de neve, década de 1970 Sérgio Lemos
Postal, década de 1940 Sérgio Lemos
Guarda-jóias, década de 1960 Sérgio Lemos
Copos de vidro e caneca, décadas de 1970 e 1990 Sérgio Lemos
Recordação de Fátima em metal, década de 1950 Sérgio Lemos
Recordação de Fátima fosforescente, década de 1960 Sérgio Lemos
Nossa Senhora do Mundo, década de 1960 Sérgio Lemos
Lamparinas, década de 1950 Sérgio Lemos
Cantil, década de 1960 Sérgio Lemos
Recordação de Fátima fosforescente, década de 1960 Sérgio Lemos
Recordação de Fátima fosforescente, década de 1970 Sérgio Lemos
Souvenirs em faiança, década de 1980 Sérgio Lemos
Fotogaleria
Bola de neve, década de 1970 Sérgio Lemos

Segundo Ondina, a estética kitsch é inerente à cultura portuguesa, apesar de ser fortemente criticada pelas “pessoas ditas com cultura académica, que desprezam em Portugal este tipo de estética”. Já os outros países encontram no kitsch uma “fonte de inspiração”. No quarto, Ondina vai percorrendo a vitrina e o móvel ao lado da cama e mostrando algumas das lembranças mais curiosas. Um cantil em forma de peixe, para guardar a água de Fátima; um globo azul com as figuras de Nossa Senhora e os três pastorinhos; uma caixa em papel onde se colocavam as velas acesas, para a cera não cair nas mãos dos peregrinos; e vários postais antigos, alguns dos anos 1920, com imagens religiosas. Para muitos, estes objectos são passam de “tralha” ou imitações de mau gosto. Mas, para Ondina, são uma forma de relembrar momentos vividos e as pessoas que lhe ofereceram estes objectos.

Da vitrina, tira uma caixa de música, uma espécie de altar com a aparição e uma gavetinha onde se guarda o rosário. A caixa já não tinha som, diz Ondina quando lhe pega, mas ao dar à corda ouvem-se logo os primeiros acordes enfraquecidos do hino de Nossa Senhora de Fátima. “Ainda tem!”, diz, admirada. “Já ganhei o dia.”

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