Para acabar de vez com o Cinema

Não existe outra saída senão aquele que deveria ter sido o ponto de partida: cabe ao governo, e neste caso ao Primeiro-ministro, explicitar uma política de fomento do Cinema e Audiovisual, e fazê-la implementar de modo sério.

Recentemente instalou-se uma polémica que aparenta circunscrever-se a questões processuais relativas ao investimento público no cinema: a nomeação dos jurados dos concursos do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). Esta polémica tem vindo a ocupar espaço nas notícias e, sobretudo, tem vindo a tomar tempo dos que fazem o cinema em Portugal, e dos que o regulam e fomentam. Esta bizarra assimetria entre uma mera questão processual e a sua enorme repercussão assinala a verdadeira natureza do problema: este é um problema de política cultural que põe a claro uma disfuncionalidade institucional entre a Secretaria de Estado da Cultura, o ICA e as entidades do sector.

Os concursos de apoio ao Cinema e Audiovisual para 2017 foram enfim anunciados um mês depois da tão discutida votação de jurados pela SECA (Secção Especializada do Cinema e Audiovisual), com cortes cegos em linhas tão fundamentais como as Primeiras Obras ou o Apoio à Produção de Cinema. Depois de o ICA se congratular, por diversas vezes, com os prémios internacionais obtidos por realizadores estreantes ou com um percurso muito curto, o mesmo ICA corta precisamente nas oportunidades de tal poder continuar a acontecer. Explicações vagas à parte, constantes num cínico documento intitulado “Declaração de Prioridades do ICA para o ano de 2017”, o que salta à vista é uma demissão completa do ICA na definição das políticas para o sector, e uma agenda clara, idêntica à do Governo anterior, de transferir poderes de decisão política e estratégica para a SECA.

Esta situação revela a incapacidade institucional e de gestão da direcção do ICA, e  a correspondente incapacidade política da tutela. Mais ainda se pensarmos que entretanto se poderia ter discutido e aprovado um novo Decreto-lei, ou pelo menos continuado a trabalhar nesse sentido, com uma calendarização rigorosa e um processo transparente.

Em Fevereiro, quando tornada pública uma carta de protesto internacional com mais de 500 signatários, tanto o Ministro da Cultura como o Secretário de Estado da Cultura revelaram um profundo desconhecimento da Lei do Cinema e da sua regulamentação, além de uma grave desconsideração por alguns princípios do Estado de direito democrático. Ambos afirmaram que o sistema de nomeação de jurados na SECA se justificaria pela necessidade de equilíbrio entre “financiadores” e “beneficiários”. Em declarações ao i, a 11 de Fevereiro, disse o SEC: “no contexto actual achamos que é a forma mais equilibrada de concertar os dois campos, o dos beneficiários, digamos assim, e o dos financiadores ”, entendendo portanto os operadores de cabo e as televisões como “financiadores” do cinema, e os receptores de apoio os seus “beneficiários”.

Ora, a despeito do facto de a fatia orçamental vinda das (polémicas) taxas de subscrição que, desde 2012, financiam o Cinema e o Audiovisual, representar menos de 30% do orçamento anual global, esta afirmação é um desastre político, uma infantilidade que não pode ser inconsequente. Pior ainda, tem vindo a ser repetida pelos mesmos, inclusive em sede de Comissão Parlamentar, sem merecer esclarecimento sério por parte dos grupos parlamentares que a escutaram.

Se as operadoras por cabo pagam uma percentagem das suas taxas de subscrição ao Estado Português para que possam funcionar num mercado regulado, negociando conteúdos, esse dinheiro é público. Se assim não fosse, não poderia ser destinado pelo próprio Estado ao financiamento do Cinema e Audiovisual. O “financiador” do cinema é o Estado Português, através do Instituto do Cinema e Audiovisual.

Por outro lado, como esclareceu o próprio Primeiro-ministro em reunião sectorial na presença do SEC, os “beneficiários” não são os destinatários dos fundos de apoio: estes são, antes, os agentes a quem o Estado entrega o financiamento para poder cumprir uma das suas funções fundamentais, fomentar e promover a Arte e a Cultura. Fá-lo através de concursos públicos, da apresentação de projectos, que depois são sujeitos a escrutínio durante e após a sua execução, estando obrigados os produtores a entregar uma cópia de todo o filme assim produzido no Arquivo da Cinemateca. Os “beneficiários” são, portanto, os cidadãos – não só os espectadores, mas mesmo os futuros cidadãos, os que ainda não nasceram, e que herdarão tal património. Permito-me citar o Sr. Primeiro-ministro — “a Humanidade”.

As poucas declarações de Miguel Honrado ganham, assim, outro contorno, e das duas hipóteses uma é verdadeira: ou o SEC não compreende os mecanismos mais básicos de funcionamento de um Estado de direito democrático (e portanto não pode ocupar as funções que ocupa), ou o SEC entende que a melhor forma de garantir o equilíbrio entre o financiador Estado e os beneficiários cidadãos é através de um órgão ocupado por representantes dos vários interesses do sector que, pervertendo a sua natureza consultiva e não deliberativa, nomeiam jurados, tendo até o poder de alterar as prioridades estratégicas do Instituto (previsto no Plano Estratégico do ICA 2014-2018, aprovado em Dezembro de 2013).

O SEC afirma que o protesto levado a cabo por 15 associações e entidades do sector não reúne a maioria do mesmo, não sendo portanto representativo dos interesses da maioria. Por outro lado, defende este sistema de nomeação de jurados por supostamente garantir um equilíbrio mais democrático entre os diversos interesses em jogo.

Em primeiro lugar, é altamente discutível afirmar que aquelas 15 entidades são pouco representativas do sector, sobretudo quando o SEC não partilha os critérios que usa para essa contabilização. As 15 entidades que se opõem a este sistema representam, se não a maioria, pelo menos uma parte muito importante dos criadores e agentes do cinema que recebem regularmente financiamento via ICA. Além disso, há que ter em conta não apenas dados numéricos mas também qualitativos: no seu conjunto são estas entidades que mais promovem actividades cinematográficas a nível nacional e internacional.

Não entrando aqui nos detalhes de uma discussão sobre os fundamentos e valores do Estado democrático, impõem-se algumas perguntas acerca do sentido ético e político das afirmações (e acções) deste Secretário de Estado: o facto de quem contesta ser uma minoria, torna a contestação irrelevante ou indigna de atenção? O facto de uma eventual maioria não contestar é garantia da bondade de uma lei ou situação? Não é função da tutela prover a que os interesses do Estado (financiador) e dos beneficiários (cidadãos) sejam garantidos, devendo para tal construir uma verdadeira política cultural? Serve de justificativa para as decisões (ou recusa de decisão) do SEC o facto de uma minoria (concedamos que é uma minoria) do sector apresentar objecções? É este o grau de sustentação das suas decisões – a estatística da contestação?

Se na SECA os directa ou indirectamente interessados votam nos jurados que avaliarão os seus projectos, não estará assim apenas assegurado que os que estiverem em maioria vêem os seus projectos melhor defendidos que os outros? É isto a política deste governo para o Cinema?

Não sendo possível conciliar todos os interesses ou anular divergências estruturais é preciso tomar decisões políticas e afirmá-las publicamente. Ao invés, assistimos a um longo silêncio quanto a intenções, critérios e prioridades, e a um ataque explícito precisamente à actividade dos que mais têm contribuído para o prestígio da cinematografia portuguesa.

Estamos num impasse. Ao ignorar ostensivamente toda e qualquer pergunta acerca da revisão do Decreto-Lei que tentou fazer aprovar e não conseguiu, por intervenção do Primeiro-ministro, o SEC adiou a problemática sine die. Não contente com isto, profere repetidamente afirmações inaceitáveis do ponto de vista político, institucional, e mesmo prático (basta ver o grau de contenda em que o sector se encontra). A direcção do ICA navega entre desculpas vãs para a sua inoperância, limitando-se a secretariar um processo que não sabe nem quer gerir. Esta direcção não defende nem dignifica a própria instituição que dirige, entregando-a a um processo silencioso de sequestro pelos interesses corporativos.

O Ministro da Cultura revela um completo desconhecimento deste dossier, limitando-se a repetir as afirmações do SEC, sem mesmo responder a cartas ou pedidos de audiência.

Posto isto, não existe outra saída senão aquele que deveria ter sido o ponto de partida: cabe ao governo, e neste caso ao Primeiro-ministro, explicitar uma política de fomento do Cinema e Audiovisual, e fazê-la implementar de modo sério. Cabe-lhe tornar clara uma política que defina o papel do Estado e o papel dos privados (e portanto também da SECA) na definição estratégica do investimento público no cinema. Os diálogos esgotaram-se há muito por uma razão simples: não é possível dialogar sobre políticas culturais com quem não conhece ou não dignifica as instituições democráticas, a própria política e o governo a que pertence. Se António Costa afirmou e afirma o seu interesse, a sua sensibilidade para o fomento da Arte e da Cultura, se se congratula por uma cinematografia que está permanentemente em destaque nos mais prestigiados festivais e instituições internacionais, está na altura de pôr a sua cabeça a pensar onde já empenhou a sua palavra.

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