Os desafios do burgomestre Moreira
Rui Moreira deve estar agora a recordar-se que o Porto é uma cidade que detesta comportamentos imperiais. Uma leitura atenta da luta entre Rui Rio e Fernando Gomes, em 2001, pode adverti-lo que, na cidade, as autárquicas são sempre uma fantástica caixinha de surpresas.
E de repente, o que se julgava ser uma viagem triunfal para a recondução de Rui Moreira na presidência da Câmara do Porto tornou-se um saco de gatos onde reina a incerteza, a dúvida, a suspeita e um travo de azedume. No meio da barafunda causada pela inesperada e bizarra ressurreição do PS na corrida autárquica, só o PSD de Álvaro Almeida, o Bloco de João Semedo e o PCP de Ilda Figueiredo têm razões para rir. O presidente Rui Moreira abdicou de um passeio triunfal por uma aventura incerta e Manuel Pizarro aparece na contenda com o ar do rapaz aturdido após um ataque de bullying no recreio da escola. O Porto autárquico é uma inesgotável fonte de surpresas.
No epicentro do terramoto está sem dúvida Rui Moreira. Por muito que culpe o Secretariado do PS, ele é o autor material da mais exemplar defenestração política dos últimos tempos em Portugal. Para percebermos melhor o que se passou, temos de fazer uma pergunta prévia: será que ele queria mesmo deitar o PS borda fora? Ou o abandono surpreendente do PS do seu barco resulta apenas de um erro de cálculo? Como na política o que conta em última instância são os votos, custa a acreditar que tenha havido um esforço consciente de Moreira para recusar a quota eleitoral de 23% captada pelo PS nas últimas eleições. O que deixa margem para a segunda opção: a manobra correu mal. Não era para ser assim.
Rui Moreira tem todos os motivos para se sentir uma estrela no firmamento da política. Para dizer o que quer e não quer. Conquistou o Porto partindo de uma base muito pequena, suscitou o interesse da imprensa internacional, geriu a cidade num dos seus momentos mais auspiciosos, projectou-se como figura de indiscutível relevância nacional e, corolário lógico, tinha razões reclamar o crédito de todas as vénias da partidocracia nacional. Recusar um envolvimento directo do PS, ou do CDS, na constituição da sua lista era uma forma de manter a coerência do seu programa. E de conservar o estatuto incontestado de primus inter pares na política portuense.
Mas, nada do que disse Ana Catarina Mendes podia justificar a sua intransigência e até agressividade para com o PS, porque, como não há almoços grátis, também não há dádiva de votos a custo zero. A secretária-geral adjunta falou de mais, mas não disse vez alguma que ou Moreira dava ao PS dois lugares e uma empresa municipal, ou correria sozinho. O PS Porto profundo, velhaco e conspirador, mexeu-se, mas para lá de uma ou outra alfinetada insidiosa, estava domado na sua irrelevância. O PS não tinha o direito de exigir em público condições para apoiar Moreira, mas o céu não cairia em cima da cabeça do presidente se aceitasse a procura de protagonismo do PS como algo natural. Foi aliás o que fez Paulo Portas nas últimas autárquicas, sem que isso tenha gerado problemas por aí além.
A questão de Moreira é que ele quer sair das autárquicas com poder acrescido, como uma força política emergente e transversal aos partidos, com uma aura que confirmasse a sua entrada na História como uma absoluta excepção num sistema partidário apesar de tudo resistente e estável no quadro europeu. E para o conseguir, tinha de remeter o PS à condição de mendigo que só por especial deferência poderia entrar na corte do burgomestre. O povo ainda gosta de quem mete os políticos profissionais na linha.
A corda rompeu porque Rui Moreira não acreditava que os socialistas pudessem ter um derradeiro assomo de dignidade e bater com a porta. O PS tinha-se tornado num saco de boxe e os sacos de boxe não se queixam da pancada. Quando, em Abril, o porta-voz de Rui Moreira veio a terreiro dizer que “não vamos ter jobs for the boys na Câmara do Porto”, deixou passar uma mensagem subliminar devastadora - toda e qualquer pretensão do PS para integrar as suas listas seria uma espécie de favor concedida a um vassalo político. Houvesse um pouco mais de dignidade do PS Porto e a conversa tinha acabado ali.
Manuel Pizarro encaixou a ofensa e agora paga a factura da irrelevância a que se votou. A forma como afastou a vereadora Carla Miranda do Executivo apenas para acomodar a rejeição de Rui Moreira a esta socialista inconformada mostrou a sua propensão para a subalternidade. Pizarro chegou a dizer que “ninguém entenderia” que concorresse contra Rui Moreira – uma forma inocente de colocar o interlocutor numa posição de força. No auge da crise na semana passada, terá tentado salvar o apoio a Moreira até à última. Até que António Costa decidiu recordar a velha expressão de Jorge Coelho e pôr termo à brincadeira: quem se mete com o PS leva.
Rui Moreira vai ter agora de lutar para ganhar. Numa cidade como o Porto, bater o pé aos grandes partidos é uma estratégia que deu frutos em 2013 e dará seguramente frutos em 2017. A “singularidade tripeira” baseia-se afinal na afirmação de uma identidade distintiva baseada nos valores liberais (ou burgueses), nas contas “à moda do Porto”, e na desconfiança face aos poderes dos nobres, da capital ou do Secretariado do PS – aquilo que configura o demónio do centralismo.
No combate para ser reeleito, o presidente tem a seu favor o cosmopolitismo e uma inegável ligação ao sentir popular do Porto. Mas terá de vencer constrangimentos. Não tem obras para mostrar. O impacte do Turismo leva um número crescente de eleitores, principalmente jovens, a recusar o seu discurso liberal e condescendente (embora correcto) quanto aos seus custos. A proliferação de parcómetros sem uma conveniente estratégia para o trânsito levou muitos a olhá-lo como um gestor insensível aos problemas quotidianos. Um discurso ríspido e, por vezes, vagamente intolerante para com a imprensa surpreendeu os que julgavam a agenda persecutória de Rui Rio contra os jornais um anacronismo irrepetível no Porto. E, mais grave de tudo, o caso Selminho, que envolve a possibilidade de construção em terrenos da família Moreira através de uma transacção judicial com a Câmara, pode tornar-se um factor de desgaste de consequências imprevisíveis.
Entre todas os trunfos e vulnerabilidades, Rui Moreira continua a ser o candidato com mais possibilidades de vencer. Os bairros estão bem à custa do trabalho de Pizarro, a Baixa vive uma dinâmica fulgurante, as contas estão melhor do que nunca, o Porto voltou a ser uma cidade de Cultura, a economia respira saúde e em planos de obras como o do Bolhão, Rui Moreira soube usar o trunfo da identidade, fazendo bem a ponte entre a Nevogilde fina e a Ribeira popular. É essa a sua força: para ambos os eleitorados, o Porto é sempre o melhor partido. Mas ao deitar o PS borda fora tornou as autárquicas numa equação de resultado incerto.
Rui Moreira deve estar agora a recordar-se que o Porto é uma cidade que detesta comportamentos imperiais. Uma leitura atenta da luta entre Rui Rio e Fernando Gomes, em 2001, pode adverti-lo que, na cidade, as autárquicas são sempre uma fantástica caixinha de surpresas.