O mundo do cosplay não é só fantasia
O cosplayer é aquele que se veste de acordo com uma personagem real ou fictícia e interpreta-a para um público. A actividade é muitas vezes vista como um simples passatempo, mas será possível atravessar essa linha e ganhar dinheiro?
Num dos quartos da casa de Leonor Grácias a fronteira entre a ficção e a realidade está esbatida. Na divisão ao fundo do largo corredor descansam as vestes de personagens de diferentes universos da ficção. Em frente ao armário, dois vestidos das princesas da Disney, Belle e Aurora, lutam pelo estrelato. Na mesa, por baixo da janela, parte da armadura da Mulher-Maravilha reflecte timidamente a luz do sol. No suporte para cabides o uniforme do conhecido canalizador italiano Mario contrasta com os vários fatos de Sheryl Nome, a protagonista da série de animação japonesa Macross Frontier.
O quarto, que pode muito facilmente ser confundido com um mero depósito de roupas de Carnaval, é na verdade um atelier. As máquinas de costura na mesa central definem essa condição, confirmada por outros utensílios de costura e máquinas espalhados pelo aposento, como pistolas de cola quente. As peças de vestiário são criações de Leonor Grácias.
Para cada um dos fatos, são precisas horas de trabalho. Primeiro, é preciso escolher a personagem cujas vestes vão ser transportadas para a realidade. A decisão não é fácil, porque na lista de possibilidades estão os protagonistas de animes, mangas, videojogos, filmes, séries, livros e banda desenhada, ou até do mundo real. Após horas de planeamento, e adquiridos os materiais necessários, Leonor finalmente avança para a construção. Por fim, é em palco que põe à prova a sua obra. Com o fato vestido, Leonor interpreta a personagem seleccionada. A lisboeta de 27 anos é uma cosplayer.
O cosplay, abreviação de costume play, consiste no uso de roupa e acessórios caracterizantes de uma personagem real ou fictícia e na interpretação dessa mesma personalidade. Leonor Grácias descreve a actividade como uma arte performativa e deixa claro que o que define um cosplayer é a representação: “A diferença entre o Carnaval e o cosplay é que no cosplay nós interpretamos a personagem.”
A entrada de Leonor no mundo do cosplay foi gradual e o principal elo de ligação foi a animação japonesa. Tal como muitas outras crianças portuguesas, Leonor teve a sua infância inundada com os desenhos animados das manhãs da televisão portuguesa. As animações japonesas Navegantes da Lua, Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball acompanharam o crescimento da lisboeta. Mais tarde, com a introdução da Internet nas escolas, começou a pesquisar as suas personagens favoritas. Em 2004 deu-se o momento da descoberta, e um ano depois foi ao seu primeiro evento.
O cosplay é frequentemente confundido com festas temáticas, bailes de máscaras ou uma celebração carnavalesca fora de época, mas para muitos que a praticam é uma carreira de sonho. A visão inicial do cosplay como um simples passatempo já foi há muito abandonada por Leonor. Hoje, faz da actividade profissão.
Para Leonor, a oportunidade de se profissionalizar surgiu com as sucessivas vitórias em concursos. “Quando comecei a ganhar prémios, comecei a levar o cosplay mais a sério. Isso deu-me um estatuto e uma fama que me impulsionou para um patamar onde me senti obrigada a fazer sempre algo melhor”, reconhece a cosplayer portuguesa. “Depois foi com o convite de algumas entidades — como a Embaixada do Japão —, que queriam promover os seus produtos com os cosplayers, que realmente começaram a surgir ocasiões para ganhar dinheiro.”
A promoção de produtos ou serviços de determinadas marcas ou empresas é um dos trabalhos pagos do mundo do cosplay que Leonor efectua. A cosplayer portuguesa admitiu ter ganho desta forma 350 euros numa única ocasião. Além de trabalhos de promoção, os cosplayers podem ganhar dinheiro com a realização de workshops ou palestras, produção de fatos ou acessórios por encomenda (comissões), apresentações em eventos e venda de prints (fotografias impressas do cosplayer completamente caracterizado). Apesar do leque variado, a cosplayer Madalena Ramires, que juntamente com Leonor representou Portugal no World Cosplay Summit em 2014, explica que a possibilidade de executar estes trabalhos está fortemente dependente do número de fãs do cosplayer. “Às vezes alugam-se bancas em conjunto para vender prints em eventos. As minhas custam três euros, as A5, e cinco euros as A4, mas às vezes faço promoções”, diz. “É claro que para vender prints é preciso ter admiradores", acrescenta, "porque Portugal é diferente do estrangeiro: lá fora fazem colecções, aqui nem tanto.”
Leonor Grácias defende que a importância do cosplay em Portugal difere daquilo que se vive na realidade estrangeira e acrescenta que em território nacional é impossível fazer cosplay a tempo inteiro. Ela própria completa o seu rendimento mensal ao trabalhar como freelancer de pós-produção de imagem. “Cá em Portugal não é possível viver só através do cosplay. As empresas ainda não estão cientes do potencial”, confessa. “Na Ásia já é 100% possível e na América também. Não é para toda a gente, só para quem se dedica e para quem se destaca. Ainda assim, algumas pessoas na Europa já conseguem ganhar dinheiro para sobreviver com o cosplay.”
“A nossa comunidade não são só os cosplayers”
Em Portugal, a Associação de Cosplay é a única mediadora entre os cosplayers portugueses e as empresas que contratam os seus serviços. A organização está caracterizada como uma associação cultural sem fins lucrativos. Segundo a descrição no site, o seu principal objectivo é a promoção e dinamização do cosplay em território nacional. Como fundadora e presidente da associação, Leonor vai além desta breve descrição.
“Fazemos a ponte entre cosplayers e entidades, cosplayers e público, e cosplayers e eventos. Nós queremos dar as condições para os cosplayers estarem nos eventos, como terem vestiários, por exemplo. Tão simples como isso. Passar de os cosplayers terem de se vestir na casa de banho pública ou no evento para terem um sítio seguro onde se possam vestir, um balneário ou um vestiário”, explica.
A presidente da Associação de Cosplay diz ainda que a organização facilita a transição do cosplay como passatempo para o cosplay profissional. Além de mediar os negócios com empresas, a organização garante a legalidade dos pagamentos: “O cosplay não é uma profissão oficial, não existe em lado nenhum nas Finanças, mas nós podemos informar os cosplayers como é que se podem fazer os pagamentos legais como prestadores de serviços.”
A adesão à Associação de Cosplay requer o preenchimento de um formulário online e o pagamento de 15 euros. A página de Facebook da organização conta com pouco mais de mil “gostos”, mas Leonor diz que o número de inscritos tem aumentado. “Cada vez temos tido mais cosplayers e mais fãs porque a nossa comunidade não são só os cosplayers. Os fãs da animação japonesa gostam de ajudar a associação”, afirma. “A associação é nova e, claro, os associados ainda são poucos, mas temos em conta também que ainda não estamos em muitos eventos.”
O amor à arte
Para quem ainda está na fase inicial do seu percurso no cosplay, as adversidades estão ainda mais vincadas. Joana Ferreira tem 20 anos e foi incentivada a experimentar o cosplay pela mãe, depois de ver uma reportagem sobre o assunto. Em 2012, teve a sua estreia.
No ano passado, Joana recebeu dinheiro pela primeira vez enquanto cosplayer. Durante a Comic Con Portugal, evento anual dedicado à cultura pop que tem lugar no Porto, Joana distribuiu panfletos como Ezio Auditore, personagem do videojogo Assassin’s Creed. A trabalhar duas a quatro horas por dia, a estudante de Belas Artes recebeu 32 euros. Com orçamentos que rondam os 200 ou 300 euros para a construção de um fato, fazer cosplay a tempo inteiro é ainda um objectivo longe de ser alcançado. “Quero ir além de um passatempo, mas no momento o dinheiro que ganho é da minha profissão de ilustradora”, conta.
Apesar de tudo, para Joana e muitos outros cosplayers portugueses o dinheiro não é a principal motivação. Quem o faz, faz por amor à arte e é isso que Joana salienta: “Eu participo em concursos para entreter o público. Adoro ver as reacções das pessoas e se fiz alguém rir, a minha missão está cumprida. Faço cosplay porque gosto e não necessariamente por dinheiro.”
Texto editado por Isabel Coutinho