Gordon Matta-Clark, um anarquitecto no Museu de Serralves
O Museu de Serralves inaugura esta sexta-feira uma exposição a partir dos arquivos deste arquitecto que nunca exerceu a arquitectura e se tornou uma referência fundamental no movimento artístico na Nova Iorque dos anos 70.
A situação não podia ser mais apropriada àquilo que se queria mostrar: a presidente da administração de Serralves, Ana Pinho, e a directora do museu, Suzanne Cotter, tiveram de esperar que terminasse o ruído de estaleiro de obras – serras, berbequins, martelos… – que emanava de um vídeo para fazerem a apresentação da nova exposição que esta sexta-feira abre nesta fundação do Porto, Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating… Gordon Matta-Clark. É como se o arquitecto e artista norte-americano, que morreu em 1978 com apenas 35 anos, estendesse no tempo a sua forma muito particular de intervir no território das artes plásticas. Com ruído de fundo e à martelada, transformando aquilo que fora arquitectura em objecto de arte, e invadindo os espaços tradicionais das artes – as galerias, os museus – com formas não convencionais de arquitectura, ou fantasmas dela.
Na apresentação, Ana Pinho e Suzanne Cotter lembraram que não é a primeira vez que Serralves dá destaque à arquitectura, numa política de programação que ganhou nova dinâmica depois que Álvaro Siza doou grande parte dos seus arquivos à fundação e ao Centro Canadiano de Arquitectura (CCA) em Montréal.
E é dos arquivos da instituição canadiana que agora chega ao Porto Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating… Gordon Matta-Clark, que Suzanne Cotter situa numa agenda de “valorização dos arquivos” e da “intercepção entre as artes e a arquitectura”, e que em 2015 tinha já mostrado em Serralves a obra do arquitecto, urbanista e pedagogo polaco Oskar Hansen (1922-2005).
Guiar entre a confusão
Gordon Matta-Clark, de quem o CCA possui o espólio, é de resto o autor da inscrição que a instituição de Montréal colocou na entrada do edifício: “Eis o que temos a oferecer-lhe: a confusão guiada para um objectivo bem preciso”.
Guiar o visitante da exposição de Serralves numa leitura nova da criação deste arquitecto que nunca exerceu a profissão – e que se considerava um “anarquitecto” –, contornando a sua cronologia, foi o objectivo de João Ribas e Delfim Sardo, os comissários de Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating… Gordon Matta-Clark. E o próprio título – Dividindo, cortando, escrevendo, desenhando, comendo…, sendo a ordem destas acções arbitrária – parece autorizar a diversidade de leituras de uma obra que, de algum modo, é um fantasma, já que existiu num determinado momento histórico mas depois se desvaneceu – como quando se procede à demolição de uma casa.
“Trata-se de um trabalho que a cada momento nos foge entre os dedos, já que muitas das coisas que Matta-Clark fez desapareceram”, explicava Delfim Sardo, na manhã desta quinta-feira, na visita guiada para os jornalistas.
Desenvolvida em quatro pequenas salas do Museu de Serralves, a mostra reúne filmes, fotografias, desenhos, cadernos de notas e correspondência que o artista trocou com amigos. Abre com Splitting (1974), mostrando o próprio arquitecto-artista a seccionar uma casa em Nova Iorque. Antecipando-se à anunciada demolição do edifício, Matta-Clark parte-a ao meio e transforma-a numa escultura, fazendo entrar a luz num objecto que, estando fechado e à espera da destruição, era um lugar inerte e obscuro.
“Há um lado poético na intervenção e no trabalho de Matta-Clark, na relação orgânica que ele estabelece com o seu próprio corpo de artista mas também com a comunidade”, nota Delfim Sardo, realçando que “ele foi um agente de transformação da Nova Iorque dos anos 1970” – e o curador estabeleceu mesmo um paralelismo com o que, pela mesma altura, a seguir ao 25 de Abril de 1974, aconteceu em Portugal com o Processo SAAL (Delfim Sardo, recorde-se, foi o curador da exposição dedicada por Serralves, em 2014-15, a este tema, O Processo SAAL: Arquitectura e Participação, 1974-1976).
Os dois comissários lembram o processo de especulação imobiliária que nessa década se verificou nos bairros desabitados e mais sombrios de Manhattan – através de agentes e empreendedores entre os quais estava uma figura chamada… Donald Trump –, mas que depois se tornaram lugares apetecíveis, revalorizados, e tomados pela gentrificação.
Chamando a atenção para que a leitura que se faz da obra de um artista “é sempre contemporânea do nosso tempo”, João Ribas realça o paralelismo que, a partir de Matta-Clark, podemos hoje estabelecer também com situações idênticas no Porto e em Lisboa, com os investimentos imobiliários nas baixas de ambas as cidades.
Uma catedral no cais 52
Outro momento marcante nas intervenções de “anarquitectura” de Matta-Clark em lugares ermos ou abandonados de Nova Iorque foi a transformação de um velho armazém desactivado no cais 52, na margem do Hudson, numa espécie de “catedral”, um “templo de sol e água” a que chamou Day’s end (1975). “Há aqui uma noção de religiosidade; ele transforma o velho armazém numa catedral em que os buracos que abre funcionam como vitrais”, diz Delfim Sardo, vendo nessa intervenção influências de movimentos estéticos europeus, como o surrealismo – ele que era filho de um pintor surrealista chileno, Roberto Matta, e afilhado da mulher de Marcel Duchamp, “Teeny”.
Esta operação não foi isenta de polémica, já que o lugar tinha sido “ocupado” pela comunidade gay, que entrou em conflito aberto com o artista-arquitecto que ousou justificar a sua intervenção com o objectivo de “trazer luz para a escuridão” – nota João Ribas –, com as leituras perversas que isso teve na altura.
Com o objectivo de enquadrar a obra de Matta-Clark com testemunhos de artistas da mesma época, os comissários acrescentaram à exposição fotografias de Alvin Baltrop e Emily Roysdon, que documentam precisamente a intervenção no cais 52. E também um pequeno filme do holandês Bas Jan Ader, Roof fall (1970), uma espécie de sketch “à Chaplin” ou “à Buster Keaton” a fazer humor sobre a relação do homem com as casas entendidas como objectos que não são apenas lugares de habitação.
O humor é, de resto, um elemento também constante nas criações de Matta-Clark. E podia atingir situações insuspeitas, como quando o artista decidiu instalar um restaurante no bairro do SoHo, designado Food (1971-73), estendendo à culinária e à questão da alimentação – e também da solidariedade social – o seu interesse pelos processos de transformação dos ingredientes da culinária.
Numa das vitrinas da exposição está a carta que, no dia 1 de Agosto de 1971, Matta-Clark escreveu ao seu amigo St. Lee Junior, explicando-lhe o projecto Food, e convidando-o “a ser comido” no restaurante. “Escrevo porque sinto que és o escolhido: o tema perfeito para uma comunhão culinária de que o mundo moderno há muito se esqueceu”.
Mais do que a dimensão “canibalista” da proposta, o mais interessante deste episódio é ele assinalar o lançamento de um projecto à volta do qual, além da questão da alimentação, erigiu um programa artístico e arquitectónico, e mobilizou uma movida artística. “A produção de Matta-Clark é, assim, compreensível a partir de uma certa ideia lúdica de grupo, ou de micro-comunidade, à qual pertenceram também artistas como Vito Acconci, Trisha Brown, Mel Bochner ou Laurie Anderson”, escreve Delfim Sardo no seu texto no catálogo que irá ser publicado ainda no decorrer da exposição em Serralves.
Depois do Porto, onde vai ficar até 3 de Setembro, Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating… Gordon Matta-Clark vai ser apresentado na Culturgest, em Lisboa, de 13 de Outubro a 7 de Janeiro de 2018.