Há ou não médicos a mais? A formação médica e a economia da saúde
Temos mesmo incapacidade de formar médicos ou as várias análises são feitas por quem está interessado na redução de vagas?
Em Portugal existe uma única formação superior que goza do monopólio público (ou melhor, estatal): a formação em Medicina! A par do monopólio da formação está um “compromisso social” da garantia da sua empregabilidade (pública), compromisso este que também é exclusivo, na medida em que nenhuma outra profissão usufrui desse “direito” (com exceção, talvez, da magistratura), tendo os seus profissionais de se submeter ao competitivo e incerto mercado de trabalho. Os esforços de manutenção deste “compromisso” — e “empregabilidade pública assegurada” — têm servido de argumento maior para a (in)sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, de reclame para um numerus clausus mais apertado no acesso aos cursos de Medicina e, também, de justificação para o dificílimo acesso dos jovens médicos a algumas especialidades.
Vejamos, contudo, algumas incongruências relativamente à formação em Medicina. O Estado possui o monopólio da formação médica, mas é praticamente o seu exclusivo financiador, na medida em que os valores de propina não suportam, nem de perto nem de longe, os custos dessa formação. Para termos uma ideia da relação custo/benefício deste monopólio, refira-se que o valor de propina anual, na Universidade de Lisboa, para o ano letivo que decorre, é de 1063,47 euros/ano, quer para o mestrado integrado de Medicina quer, por exemplo, para uma licenciatura em Letras. É escusado comparar a abismal diferença quanto à necessidade de meios, despesa e proveitos públicos.
O Estado (e, logo, cada um de nós, através dos impostos) contribui, portanto, quase em exclusividade para a formação médica, mas não tem a mínima possibilidade de captar qualquer retorno desse investimento. Menos de 1/3 dos médicos trabalha em exclusividade para o setor público. A maioria acumula com o setor privado, sendo que nos últimos tempos se verificam autênticas migrações de profissionais para os grandes grupos privados de saúde, que, por sua vez, alimentam parte do setor financeiro através dos designados seguros de saúde (que de seguro nada têm).
O Estado “importa” médicos (veja-se, por exemplo, o caso dos médicos cubanos) para suprir falhas no Sistema Nacional de Saúde, mas tem deixado escapar milhares de candidatos ao curso de Medicina para países estrangeiros (em particular, República Checa e Espanha). O Estado predispõe-se a pagar mais (ainda que irrisoriamente) a médicos que aceitem fazer horas extra (parecendo desconhecer o burnout nestes profissionais e o aumento do erro com o incremento da taxa de esforço laboral), mas não tem qualquer plano para reestruturar o perfil profissional na área da Saúde.
Ainda assim, o Estado refere que não há falta de médicos. Apesar dos utentes sofrerem horrores nos longos tempos de espera para exames e intervenções clínicas urgentes, algumas delas vitais, e de milhares de portugueses não terem atribuído um médico de família, continua a apregoar-se (com o suporte da Ordem dos Médicos) que Portugal é dos países com mais médicos por mil habitantes — 4,3 médicos por mil habitantes —, logo, acima da média da OCDE, esquecendo, porém, que no Serviço Nacional de Saúde essa taxa é de 2,7 médicos por mil habitantes, logo, muito abaixo da média europeia.
O argumento maior é, portanto, não o da falta, mas o da má distribuição. É curioso que, relativamente a este argumento, se tenham encerrado dezenas de centros de saúde, desativado tantos outros recursos institucionais, criadas novas instituições de ensino da Medicina (UBI, UAlg e UAveiro), sem contudo se conseguir fixar os docentes (na maioria, “emprestados” por outras universidades) ou, mesmo, não acreditando os cursos em funcionamento (como foi o caso da Universidade de Aveiro).
Tendo em vista este cenário, algumas reflexões se tornam necessárias. Deve Portugal continuar com a estratégia de formação médica restritiva que tem tido até agora? Ou deverá implementar um modelo formativo mais aberto e competitivo? Deve Portugal continuar a deixar fugir candidatos ao curso de Medicina e jovens médicos para o estrangeiro, ou deve realizar esforços, entre os diversos parceiros e iniciativas, para os formar cá? E, já agora, deve Portugal estender esse esforço à cooperação com a CPLP, onde a falta de profissionais de saúde é aterrorizante, onde a formação é praticamente inexistente e onde temos uma matriz cultural e histórica comum?
Recentemente, o economista Pedro Pitta Barros perguntava (in Observador): “Temos mesmo incapacidade de formar médicos na especialidade ou as várias análises são feitas por quem está interessado na redução de vagas?” Eu reformularia: “Temos mesmo incapacidade de formar médicos ou as várias análises são feitas por quem está interessado na redução de vagas?”
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico