Finalmente, há um Eixo Central à europeia
Do que aqui se trata é de dar vivas à empreitada que a Câmara de Lisboa decidiu em boa hora levar por diante e que conseguiu finalizar em tempo útil.
O advérbio de tempo que dá mote ao título do presente artigo poderá parecer querer remeter o leitor para o tempo da Segunda Guerra Mundial, ou para nem sequer 100 anos atrás, altura em que o troço que vai da hoje designada Avenida da República à sua homóloga Fontes Pereira de Melo mostrava (qual campanha do Conde Potemkin) uma Lisboa bela e cosmopolita, pontilhada por palacetes eclécticos e prédios de rendimento no melhor espírito das Beaux Arts, bordejando um espaço público desanuviado e rectilíneo, bem composto de árvores e em que os carros eléctricos atestavam a tal modernidade europeia já então tão invocada. Puro engano.
Do que aqui se trata é de dar vivas à empreitada que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) decidiu em boa hora levar por diante e que conseguiu finalizar em tempo útil, reformulando por completo o espaço público desde a praça de Entrecampos à do Marquês ao reperfilar os passeios, introduzir ciclovias, disciplinar o estacionamento automóvel, introduzir uma placa central verde, plantar um sem-número de árvores em todo o eixo, aumentar as zonas pedonais, colocar bancos para repouso, melhorar a iluminação e alindar o Saldanha, uma praça que definitivamente já não o era.
Sob esse ponto de vista, a CML merece parabéns de todos. Dos que a apoiaram e a esta obra desde o início. Dos que a combateram por razões que a razão desconhece (ou talvez não) mas que, já dela tirando evidente partido (há alguém que possa dizer mal do simples facto de agora ter mais passeio para andar a pé e passear o cão ou ter aonde andar de bicicleta?), continua a não dar o braço a torcer. Foi por isso uma decisão corajosa, ainda mais em ano de eleições, altura em que as buzinas e quem as gosta de tocar servem de instrumento ideal para o jogo político-partidário, noblesse oblige. Dito e feito. Hoje mesmo, em hora de ponta (e antes, não havia hora de ponta?) ou quando São Pedro resolve fazer das suas, ainda se fazem ouvir algumas, hoje que obra está feita e é usufruída e elogiada pelo comum dos mortais.
Mais, em duas penadas, quais efeitos colaterais subliminares, a CML arrasa com a ideia peregrina do túnel sob o Saldanha (havia até quem o propusesse como medida eleitoral, pasme-se!), e com a obra (à época, também peregrina) hoje evidentemente redundante do viaduto no Campo Pequeno (e que a prazo o tapem de terra e árvores!). Dobre-se e redobre-se o aplauso, portanto.
Contudo, e não há bela sem senão, nesta obra do Eixo Central houve erros, alguns, poucos, graves, e muitos, de detalhe e corrigíveis. Grave foi essencialmente o abate desnecessário de várias árvores de grande porte (duas tipuanas no Saldanha e vários choupos na Av. Fontes Pereira de Melo) e desnecessário porque em resultado do “paisagismo de autor” ter ego. Corrigíveis são vários: alguns bancos colocados estupidamente em cima das ciclovias, a profusão de candeeiros “periscópio” em dessintonia evidente com os candeeiros recentes da Av. Duque d’Ávila, a colocação das barcas na calçada feita não pedra a pedra mas em bloco ligado por cimento, o excesso de placas de piso “confortável” nos passeios planos da Av. Da República, o mau dimensionamento de alguns lugares de estacionamento; tudo coisas menores, é certo, mas que se acumulam aos erros que Lisboa, estranhamente, vem somando em termos de maus detalhes em tudo quanto é obra em espaço público.
Contudo, ainda, esta obra está incompleta e para que não seja também ela potemkiniana, falta à CML cuidar da moldura edificada e dizer basta à especulação imobiliária e ao abandono declarado de vários imóveis de valor arquitectónico e histórico ainda existentes naquele eixo: o Imóvel de Interesse Público de 1909, de Rodriguez Prieto, o prédio da “esfera-armilar”, de Norte Júnior; o imponente edifício Déco, do mesmo arquitecto; o palacete Valmor, de Ventura Terra, os dois palacetes classificados do Saldanha e o prédio de transição imediatamente colado ao “hotel da manápula”, o prédio premiado de Pardal Monteiro. E obrigar a reparar os interiores e as traseiras dos prédios da Casa Xangai e do prédio ao lado da Versailles. E mandar retirar as abjectas e ilegais marquises dos prédios do Galeto e da Ceuta.
Porque continua também a faltar à CML dizer não aos monstros urbanísticos e à arquitectura dos anos 70-80 que insiste em sair de estiradores obsoletos. Já bastam aquelas coisas ditas Monumental, Residence e Evolution. Ou a coisa que vem para o gaveto com a Av. 5 de Outubro e que ainda ninguém percebeu como ali chegou, àquela esquina que tão bem rematada estava por um edifício elegante da “Lisboa Entre-Séculos”. Ou a torre de 25 andares que se anuncia para o meio daqueles prédios grafitados, deixados a apodrecer numa teia de peripécias de rasto pouco digno já com quase duas décadas de historial. Ou o outro hotel que há-de vir para a esquina da Av. António de Aguiar. Para que sejamos todos vencedores e não haja derrotados, sejam eles quem forem. E daqui por 100 anos, como será?