Terry Gilliam era um humorista, Brazil tornou-o num visionário
Goste-se ou não se goste, Brazil, o clássico de culto de Terry Gilliam, é um filme-charneira do cinema moderno.
1984 ½ era um dos “títulos de trabalho” que Terry Gilliam foi tendo para Brazil, e mesmo para quem só conhece do americano o seu trabalho como responsável das animações surreais que pontuavam os sketches televisivos dos Monty Python, ou para quem foi acompanhando infrequentemente os seus filmes posteriores, é uma definição que faz todo o sentido. Brazil foi rodado no exacto ano de 1984 que inspirou a burocracia tentacular e esmagadora do mundo distópico em que a sua história decorre, e está pontuado pelo absurdo escarninho, retorcido e selvagem com que os Python arrasavam os últimos vestígios da fleuma imperial britânica. E, visto a 30 anos de distância, tem aquela inexplicável aura de “cápsula do tempo” que resistiu intacta aos anos que passaram para fazer hoje, talvez, mais sentido do que fazia na altura. A sátira kafkiana da sociedade prisioneira da burocracia tecnológica que ela própria criou é hoje ainda mais amarga do que há 30 anos, e o desespero que o filme manifesta — uma das razões pelas quais Brazil dividiu opiniões à altura da estreia — parece feito à medida destes dias de fake news e pós-verdade.
Há, por isso, que recordar que Brazil é também um filme que, embora feito por um cineasta revelado no fervilhante caldeirão da cultura pop dos anos 1960 como parte de uma das mais influentes troupes cómicas britânicas de sempre, reflectia o período Thatcherita em que foi feito, e o novo cinema britânico que se estava a erguer desde os tempos do punk. O governo de Thatcher foi, todos sabemos, um pára-raios à volta do qual a comunidade artística inglesa se reuniu, reagindo ora de modo activista ora de modo escapista, e o ódio escarninho ao sistema e à burocracia que Gilliam transportava desde os tempos dos Python é aqui levado a um extremo de absurdo.
Mais: numa altura em que o cinéma du look de publicitários “adoptados” pelos americanos como Ridley Scott, Adrian Lyne, Alan Parker ou (do outro lado do canal da Mancha) Jean-Jacques Beineix ou Luc Besson parecia dominar, Gilliam usava essa estética para propor um proto-steampunk, claustrofóbico e esmagador, que virava do avesso os clichés do filme de época britânico para dar peso a uma distopia burocratizada que nunca tem dúvidas e raramente se engana, mas onde o nepotismo e a eterna divisão classista entre os 99% e o 1% continuavam a existir. Brazil é, de certo modo, um filme hiper-romântico — o seu protagonista Sam Lowry (um extraordinário Jonathan Pryce) é uma alma sonhadora perdida num sistema esmagador (e é curioso notar que 1984 foi, também, o ano em que os Smiths fizeram a sua aparição no panorama musical, corporizando e cristalizando a rejeição de uma ideia de sociedade, de um modelo britânico que parecia preso nos anos 1950). Lowry é uma espécie de alter ego de Gilliam, perseguindo a mulher (literalmente) dos seus sonhos pelo meio de uma burocracia labiríntica que procurou sem sucesso virar a seu favor.
É aqui que entra a célebre “batalha de Brazil” que marcou indelevelmente o filme e da qual, da verdade, Gilliam nunca se recompôs. Brazil — produzido por Arnon Milchan, que alinhava naquela altura “filmes malditos” como O Rei da Comédia de Scorsese e Era uma Vez na América de Leone — portou-se bem na Europa, onde foi distribuído pela Fox na “versão do realizador” com 143 minutos, mas “empancou” nos EUA, onde foi uma das vítimas da formatação do sistema de estúdios. A Universal, que distribuíra os filmes dos Python e o anterior filme de Gilliam, Os Ladrões do Tempo, não sabia como vender um filme tão fora do baralho, e recusou-se a estrear a versão de 143 minutos, alegando ser “demasiado longa” e “pouco comercial”. O filme ficou durante quase um ano na gaveta enquanto o realizador e o estúdio entravam em braço de ferro à volta da montagem: se Gilliam não tivesse mostrado a sua versão a críticos e colegas à revelia do estúdio, resultando na associação de Críticos de Los Angeles dar-lhe o prémio de melhor filme do ano, talvez Brazil não tivesse obtido o estatuto de grande clássico de culto. Seja como for, foi aqui que Gilliam obteve a sua reputação de autor maldito: a guerra surda com a Universal reflectir-se-ia negativamente no desastre da sua versão das aventuras do Barão Munchausen, e se os sucessos de O Rei Pescador e 12 Macacos o levaram a pazes desconfiadas com Hollywood, a saga de Santa Engrácia do Homem que Matou Dom Quixote e as quezílias com Harvey Weinstein nos Irmãos Grimm apenas confirmaram a relação desconfortável do realizador com o sistema de produção americano (dentro do qual não voltou a trabalhar desde 2005).
Tudo isto, no entanto, são simples fait-divers que acabam por reforçar a dimensão única, irrepetível, de Brazil. Talvez pela presença do dramaturgo Tom Stoppard no guião, este é também o filme narrativamente mais sólido do realizador, com Gilliam a dar largas à sua revolta contra as mentalidades mesquinhas e os pequenos poderes através da história de um “homem sem qualidades” apanhado num erro de sistema, inscrita numa longa genealogia do cinema clássico anglo-americano que ele ajudou a projectar para outras órbitas. Antes de Brazil, Terry Gilliam era apenas um humorista. Brazil tornou-o num visionário, e esse é, desde então, um fardo que ele transporta.