A França é uma festa, para os populismos de direita e de esquerda
Independentemente de quem ganhar as eleições presidenciais, a França já é uma festa para os populismos de direita e de esquerda.
1. As eleições presidenciais francesas que vão decorrer a 23 de Abril, primeira volta, têm sido marcadas por frequentes surpresas, escândalos e viragens das intenções de voto durante a campanha eleitoral. Dos cinco candidatos principais — Emmanuel Macron, Benoît Hamon, Jean-Luc Mélenchon, François Fillon, Marine Le Pen —, o único que as sondagens mostram afastado de possibilidades reais de disputar a segunda volta é Benoît Hamon, do Partido Socialista. Face ao que parecia quase certo há pouco tempo atrás — uma segunda volta entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen —, as últimas semanas mostraram que tudo pode estar ainda em aberto. Um dos aspectos mais relevantes e surpreendentes deste acto eleitoral é que, entre os candidatos com efectivas possibilidades de passagem à segunda volta, apenas um, François Fillon da direita conservadora (Os Republicanos), é o candidato oficial de um partido tradicional de poder.
2. Com tanta incerteza sobre quem passará à segunda volta, a realizar no próximo dia 7 de Maio, a questão mais colocada nos últimos dias é sobre o impacto da ameaça terrorista sobre o resultado eleitoral. O último episódio foi um ataque no centro de Paris, nos Campos Elísios, contra forças policiais, da autoria de um francês de origem magrebina, prontamente reivindicado pelo Daesh. Não foi um episódio isolado, mas um elo de uma cadeia de atentados. Desde 7 de Janeiro de 2015, com o ataque à sede do Charlie Hebdo, ocorreu uma sucessão de acontecimentos de maior ou menor gravidade, os quais já vitimaram mortalmente mais de duzentas pessoas. Os mais graves foram os de 13 de Novembro de 2015, em diversos pontos da capital francesa. A manutenção em permanente estado de emergência, como as forças de segurança a patrulhar as ruas e outros locais públicos, inevitavelmente adensa o sentimento de apreensão. Por sua vez, o receio de mais atentados, e a sua continuada ocorrência, alimenta o discurso político sobre o falhanço do Estado (leia-se, dos governos dos partidos tradicionais) em proteger os seus cidadãos.
3. Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional, já há muito tempo que ocupa a atenção da opinião pública interna e internacional, com o seu discurso securitário. O seu populismo de (extrema)direita é bem conhecido. Quanto ao seu programa anti-imigração extra-europeia e de nacionalismo económico e político, está em rota de colisão com os princípios da União Europeia, a qual aponta como responsável pelos males franceses. O que já não era muito conhecido, pelo menos fora de França, era o populismo à (extrema) esquerda, ou da esquerda radical, de Jean-Luc Mélenchon. A sua subida de vários pontos nas intenções de voto, surgindo, nos últimos dias de campanha, mesmo com possibilidades de passagem à segunda volta, captou também a atenção internacional. Somando as intenções de voto em ambos, os valores atingiam um patamar algures entre 40% e os 45% do eleitorado. O valor é particularmente elevado para uma democracia liberal consolidada como a França. Mostra como os partidos tradicionais de poder, à esquerda e à direita, não estão a conseguir fixar o seu eleitorado e a perder relevância política.
4. Les extrêmes se touchent, é uma expressão francesa que visa mostrar que os opostos, paradoxalmente, não só têm certos traços em comum como se poderá passar, com uma relativa facilidade, de um extremo ao outro. No actual contexto político-ideológico francês, a questão levanta-se quanto a Marine Le Pen (Frente Nacional) e a Jean-Luc Mélenchon (Partido de Esquerda, Ecologia-Socialismo-República). Na sua auto-imagem, Jean-Luc Mélenchon é um socialista republicano. A sua linha ideológica e de acção política parece inspirada nas concepções da filósofa política belga Chantal Mouffe. A estratégia parece ser combater o populismo de direita com um populismo de esquerda. Mas aqui começa também a questão da semelhança das suas propostas e actuações políticas. Ambos têm uma componente patriótica, ou nacionalista, mais ou menos vincada; ambos atacam a União Europeia e o Euro; ambos estão, de alguma forma, em rota de colisão com a NATO; ambos estão contra as privatizações de empresas públicas e a globalização (neo)liberal. Claro que é excessivo afirmar que as causas são exactamente as mesmas e que não há propostas vincadas ideologicamente, à direita e à esquerda. Mas, para um eleitorado com menos consciência ideológica e revoltado com os partidos de poder, considerar votar num ou noutro pela similitude dos alvos das críticas, não parece nada de extraordinário.
5. Independentemente de quem ganhar as eleições presidenciais, a França já é uma festa para os populismos de direita e de esquerda. Longe vão os tempos em que era internacionalmente conhecida e celebrada na literatura e no cinema, pelo seu gosto refinado, pela capacidade de ditar modas e pela vida boémia e intelectual parisiense. No século XX, o livro do escritor norte-americano Ernest Hemingway, A Moveable Feast, traduzido para português como “Paris é uma Festa”, foi talvez o que mais difundiu essa imagem. Mas importa também não idealizar o passado. Nos anos 1920, na altura em Hemingway passou por Paris, já germinavam na sociedade francesa e europeia os extremismos e radicalismos, à direita (fascismo) e à esquerda (comunismo), que marcaram a primeira metade do século XX e se confrontaram na II Guerra Mundial. Os males eram outros, mas não eram menores, pelo contrário. Apesar de tudo, nos tempos conturbados que hoje vivemos, essas memórias das tragédias do século XX têm impedido, pelo menos até agora, as piores derivas políticas.