Matéria negra
Romance de revolta contra algumas “verdades” herdadas, e ao mesmo tempo um périplo sobre a passagem da ingenuidade à maturidade.
Originalmente publicado em 1948, O Vestido Vermelho (cujo título a partir do sueco deveria ser A Criança Queimada) é por alguns considerado a obra-prima do atormentado escritor Stig Dagerman (1923-1954), e que influenciou à época muitos escritores suecos, entre eles Per Olov Enquist. Nele se narra a perturbada e perturbadora vida de um jovem, Bengt, que luta de maneira perturbada para lidar com a perda mãe. Ele sente-se enganado pelo pai (o desespero transforma-se em raiva) quando sabe que este tem uma amante, Gun, e pretende castigá-lo, defraudá-lo. Desconfianças e ódios irrompem abruptamente, as emoções estão à flor da pele. O vazio do amor materno, impossível de preencher, e perdido de forma súbita, encontra na relação do pai com Gun um leitmotiv para a acção deste romance, escrito, segundo confessou o autor, “em grande solidão trancado num quarto numa aldeia francesa”. Os caracteres das personagens vão-se redesenhando à medida que a acção se vai desenvolvendo, e a partir dos atritos que têm consigo próprias e com as outras. Ao longo da atormentada jornada, o jovem Bengt procura uma “satisfação imperfeita” (como nota Irene Lisboa no brilhante prefácio à primeira edição portuguesa 1958) do perdido amor materno, “uma morta que se amou, longe de se apagar da nossa existência, continua a viver nos actos e nos sonhos daquele que verdadeiramente a amou”.
Apesar da escrita fluente e da simplicidade formal da narrativa, O Vestido Vermelho é um romance de grande complexidade psicológica, onde o autor é capaz de tornar os actos mais vulgares das personagens em acções significativas, onde tudo serve como matéria escura. Ao mostrar-nos a vida como um percurso atormentado, através dos olhos de um jovem em profundo tumulto interior (note-se também que Dagerman tinha 24 anos de idade quando o escreveu), o autor, nesta história realista, questiona a maneira como a consciência se submete ao instinto e aos sentimentos, iluminando a paixão. É o retrato de um estado mental imaturo e ainda preconceituoso. Aquilo que a princípio se mostra como a estreiteza moral do jovem (ao descrever a relação do pai com Gun), acaba aos poucos por levar a um questionamento profundo da moralidade e da fidelidade nas relações familiares (inclusivamente na relação entre o pai e o filho), apresentando-as no final como um papel social apenas para ser representado, quase sem outro valor senão esse. Tudo como se o leitor fosse forçado a observar a vida familiar através de um vidro que queima.
Das ruas nevadas de Estocolmo a história desloca-se para as águas profundas e escuras que banham as ilhas remotas da Suécia, e todo o drama se turva ainda mais quando Gun entra no seio da família. “São horríveis as ranhuras entre os degraus da dor, e cheias de sal e de areia.” O ciúme ameaça devorar o que resta de lucidez no jovem Bengt, e este acaba envolvido com a amante do pai, quase diante dos olhos de Berit, a namorada, uma espécie de “observador passivo” de toda a história, “uma jovem que tem medo de tudo”.
A personagem Bengt, no seu tumulto, apresenta sempre um comportamento entre o melodramático e o histriónico, deixando perceber que apesar do simbolismo freudiano disfarçado, Dagerman parecia bem consciente dos aspectos psicológicos que queria descrever. O romance move-se em várias direcções, sem nunca se chegar a comprometer, tendo por vezes alterações quase drásticas de tom. Os capítulos, sempre escritos na terceira pessoa, alternam com cartas de Bengt para si próprio não faltando relatos contraditórios da mesma situação.
O Vestido Vermelho é um romance de revolta contra algumas “verdades” herdadas, e ao mesmo tempo um périplo sobre a passagem da ingenuidade à maturidade. Não deixa de ser curioso que, quase no início do livro, quando Bengt, “cruel e vigilante”, critica o pai por causa da amante, o progenitor diga duas ou três frases sobre a maturidade e a “verdade” na vida, como se profetizasse o que iria acontecer lá mais para o final do romance, o questionamento da moral burguesa e da sua falta de sentido. Mas este é, sobretudo, um romance sobre a liberdade do indivíduo, um dos grandes temas dos escritos de Stig Dagerman.