A literatura desalojada

Se nem a “indústria literária”, nem a ecologia literária, nem os protocolos histórico-culturais da transmissão do património literário conseguem pôr à nossa disposição a obra de Agustina Bessa-Luís, então o melhor é decretar o estado de emergência.

Há alguns dias — soubemos pela revista Sábado — os livros de Agustina Bessa-Luís foram retirados da livraria do grupo editorial Babel, a que pertence a Guimarães, a editora de sempre da escritora. “Agustina já não vende”, foi a informação que a Babel deu ao jornalista da Sábado. Para a editora, a situação (isto é: o pagamento acordado de cerca de 1500 euros mensais por uma obra que inclui, só em romances, quase meia centena) tornou-se “incomportável”. O contrato estaria então a ser renegociado, algo que a família desmentiu. Só não se percebe por que razão tiveram os livros de ser expulsos ou desalojados. Visto do lado da “sociedade literária”, um belo nome para designar uma coisa incerta, incomportável deveria ser o facto de apenas uns pouquíssimos títulos de uma obra tão vasta e importante estar disponível nas livrarias. Se nem a “indústria literária” (outro nome sonante, utilizado perla primeira vez por Tocqueville, segundo informa um grande crítico e historiador da literatura, o italiano Giulio Ferroni), nem a ecologia literária, nem os protocolos histórico-culturais da transmissão do património literário conseguem pôr à nossa disposição, nas livrarias, a obra de uma escritora que ocupa um lugar central na literatura portuguesa contemporânea, então o melhor é decretarmos o estado de emergência nestas paragens.

Numa análise sumária, este exemplo revela os resultados do processo de concentração editorial e da consequente transformação das livrarias em entrepostos da indústria de conteúdos produzidos pela ordem editorial em vigor. Num regime do “acabado de sair”, que suspende a memória, a distância e a crítica, e em que a actualidade é produzida como um poderoso artefacto, uma escritora que deixou de publicar e de aparecer na televisão e nos jornais fica com a sua obra relegada para a condição de “fundos” — essa zona cada vez mais exígua e longínqua, graças a um presentismo triunfante em todos os domínios, incluindo no modo de edição, comercialização e divulgação dos livros. Para analisarmos devidamente a condição póstuma para que tende hoje a literatura, perceptível na aventura editorial da obra de Agustina e de outros escritores, temos de ter em conta também o facto de o ensino da literatura, que foi o instrumento privilegiado para reconhecer a continuidade com o passado e a cultura nacionais, já não ocupar hoje o mesmo lugar (não entremos no discurso sobre os malefícios de uma coisa a que alguns chamam “eduquês”  e “falta de exigência” porque é tudo muito mais complicado e exige instrumentos de análise que não é a dos traficantes de ideologia pindérica). Houve uma redução do espaço da literatura na cultura global e, por conseguinte, também na escola. A formação global é hoje dominada pelos modelos propostos e impostos por outros regimes da comunicação e de socialização da cultura. Ora, grande parte da literatura que se vai escrevendo e publicando tenta abrir vias no mercado da comunicação, entrando no próprio jogo que a aniquila. E assim se deixa capturar pelo vórtice do ruído generalizado. Verifica-se que são os próprios escritores, muitos deles, a fazer tudo o que é necessário para tornar a literatura subalterna e não essencial. A lógica da publicidade e as quermesses literárias — em que se fala de muita coisa e quase nada de literatura -, justificadas por um proselitismo filisteu, mais não fazem do que subscrever a condição póstuma da literatura. Paradoxalmente, à restrição, retracção e marginalização do seu espaço, corresponde um aumento angustiante da quantidade de livros publicados. Encontramos cada vez mais tralha no caminho para os livros de Agustina.

 

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