Uma dança de poder e manipulação com vista para a Cuba dos Castro
Hamm, paraplégico e cego, manipula o também deficiente Clov numa implacável coregrafia de domínio e submissão. Tania Bruguera encenou Endgame, de Beckett, implicando fisicamente o espectador.
Quem entrar por estes dias no claustro barroco do Mosteiro de S. Bento da Vitória depara-se com um gigantesco tubo de mais de seis metros de altura, feito de um tecido branco elástico e resistente, e rodeado de uma densa estrutura de estrados metálicos. É o insólito cenário que a artista e activista cubana Tania Bruguera, mais conhecida como performer e autora de instalações, idealizou para a sua encenação da peça Endgame, de Samuel Beckett, que tem esta quinta-feira estreia mundial no Porto, no âmbito da BoCA (Biennial of Contemporary Arts).
Originalmente escrita em francês com o título Fin de Partie, e depois traduzida para inglês pelo próprio Beckett – as edições portuguesas têm optado por Fim de Festa ou Fim de Partida –, Endgame, estreada há 60 anos em Londres, passa-se num aposento nu, com uma porta que dá acesso a uma cozinha que nunca se vê, e duas pequenas janelas de difícil acesso, que abrem para um mundo aparentemente deserto e devastado. No interior, um cego paraplégico, Hamm, e um homem que funciona como seu servo, Clov, cuja perna rígida não lhe permite sentar-se, mantêm uma sufocante relação de poder e manipulação. E também de interdependência, já que nenhum deles parece ser capaz de abandonar o outro, ainda que Clov constantemente afirme querer fazê-lo. Completam o elenco os pais de Hamm, Nagg e Nell, que perderam as pernas num acidente e vivem no interior de caixotes do lixo.
Artista política, com uma obra que lida de diversas formas com os tópicos do poder, do controlo, da manipulação, Tania Bruguera apaixonou-se por esta peça de Beckett à primeira leitura e há muito que sonhava encená-la um dia. E quando surgiu o convite do director artístico da BoCA, John Romão, e este lhe explicou que a lógica da bienal era justamente a de tentar “desviar” os artistas da sua zona de especialização, não deixou escapar a oportunidade. “Há 20 anos que queria fazer isto”, diz Bruguera ao PÚBLICO. “Não sei se as pessoas vão gostar ou não, mas eu sinto-me completamente realizada”.
E se é a sua estreia absoluta na encenação, o texto de Beckett está tão próximo das suas preocupações e obsessões enquanto artista que não sente muito esse peso. “Não vejo nada isto como uma coisa diferente do que venho fazendo”, garante. E o que vem fazendo inclui, por exemplo, aparecer em público nua e com uma carcaça de carneiro ao pescoço, e comer terra durante 45 minutos, como sucedeu numa performance de 1997 em Havana, ou convencer os seus compatriotas cubanos a pegarem num microfone e dizerem num minuto o que lhes viesse à cabeça, como fez em 2009 para extremo desagrado do regime, que desde então já a deteve várias vezes, ou ainda viver durante um ano num pequeno apartamento dum bairro de Queens, em Nova Iorque, com cinco imigrantes e respectivos filhos.
Também propôs a criação de um partido transnacional de emigrantes a sedear em Paris e lançou recentemente em Havana o INSTAR (Instituto de Artivismo Hannah Arendt), convidando artistas e activistas de todo o mundo a colaborarem com os cubanos na democratização do regime, e estimulando os seus compatriotas a candidatarem-se a cargos públicos. Para dar o exemplo, ela própria anunciou que se candidataria à presidência de Cuba nas eleições anunciadas por Raul Castro para 2018.
Filha de um dos fundadores do Partido Comunista de Cuba, Miguel Brugueras del Valle, depois diplomata e vice-ministro dos Negócios Estrangeiros de Fidel Castro, Tania vive dentro e fora do país e mantém uma relação tensa e complexa com as autoridades cubanas. Mas o seu extenso e reconhecido percurso como artista internacional nunca a afastou das suas raízes. “Cuba é um ponto de referência na minha obra, porque me interessa compreender como o poder utiliza as pessoas, e todas as cumplicidades implicadas nesse processo”. O fenómeno é universal, reconhece, “mas em Cuba, como é uma pequena ilha, as coisas tornam-se ridiculamente claras”.
Um espectador consciente
Mantendo uma rigorosa fidelidade ao texto de Beckett, este Endgame nem por isso constitui excepção a essa presença obsessiva de Cuba na sua obra, e e nem seria preciso notar que o protagonista, o manipulador Hamm, ostenta uma barba suspeitosamente castrista que não consta das minuciosas indicações cénicas do dramaturgo.
Contando com um notável Brian Mendes – actor da prestigiada companhia de teatro experimental New York City Players, de Richard Maxwell – no papel de Hamm, e com o artista e performer Jess Barbagallo a compor um não menos convincente Clov, a peça, falada em inglês, inclui ainda Lara Ferreira e Pedro Aires dando respectivamente corpo a Nell e Nagg. Corpo, mas não voz, já que essa é assegurada, em off, por Chloe Brooks e Jacob Roberts.
Mas a grande inovação da abordagem de Bruguera está no dispositivo cénico que concebeu, que envolve os espectadores na peça de um modo pouco convencional: não apenas a vêem a partir de cima, como se vêem uns aos outros. Os estrados que rodeiam essa espécie de asséptico tubo de ensaio gigante em cujo fundo decorre a acção permitem que o público se posicione, à sua escolha, a dois, quatro ou seis metros de altura. Em cada um destes níveis, o tecido que compõe o cilindro central apresenta pequenos rasgões nos quais o espectador enfia a cabeça para seguir a peça, vendo ao mesmo tempo uma colecção de outras cabeças sem corpo a espreitarem a toda a roda.
Assistir a uma peça de uma hora e tal em pé, encostado a um estrutura de ferro recoberta por uma teia de arame, e curvado para a frente, com a cabeça enfiada num pano, não é particularmente confortável, mas a ideia foi mesmo essa. “Era importante que não fosse completamente cómodo, queríamos que o espectador estivesse consciente do seu corpo”, diz Bruguera.
Uma solução que também torna a assistência mais consciente das implicações práticas das diferentes limitações físicas dos protagonistas. “Queremos que o espectador sinta que pode ser cada uma das duas personagens”, explica a encenadora. Essa simetria entre mestre e servo, já sugerida no texto de Beckett, é sublinhada na encenação de Bruguera: “Hamm tem uma camisa larga e não tem calças, e Clov tem calças mas está em tronco nu, como se fossem duas metades da mesma coisa”, observa a artista.
A ideia de pôr a assistência a olhar para baixo é que implicou um ligeiro desvio às indicações de Beckett. Presumivelmente para acentuar essa complementaridade entre Hamm e Clov, o dramaturgo imaginou o primeiro sempre sentado, precisamente a posição vedada ao segundo. Mas neste Endgame Hamm está mais deitado do que sentado na sua cama de rodas, já que doutro modo os espectadores não lhe veriam o rosto.
O que mais interessou à criadora cubana nesta sua primeira encenação – que pode ser vista esta quinta-feira às 15h e às 21h e na sexta-feira às mesmas horas – foi “mostrar que a manipulação se faz através dos sentimentos do outro, não é uma violência directa, é como uma coreografia de poder, com um a submeter e o outro a ser submetido”. E tanto podia estar a falar da peça como da sua interminável dança com o regime cubano.