40 anos de jardinismo, contados pelo próprio

Relatório de Combate, que este mês chegou às livrarias, é biografia política de Alberto João Jardim. Mais de 800 páginas em que os encontros e desencontros com Lisboa são retratados e justificados.

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MIGUEL SILVA/CONTRALUZ

A narrativa de Alberto João Jardim dos 40 anos em que governou a Madeira bem como o PSD local começa com um telefonema às seis da manhã do dia 25 de Abril e termina com o desencanto pelo estado a que o país e o "seu" PSD, o nacional e o madeirense, chegaram.

Pelo meio, e ao longo das 848 páginas que compõem a biografia política de Jardim, o homem que muitas vezes se confundiu com a ilha que liderou com mão de ferro, percorre alguns dos episódios mais significativos que marcaram o país político. Sendo quem é, Jardim não foge à polémica. Tenta clarificar algumas em que esteve envolvido. Esquece (propositadamente?) outras e acrescenta mais umas quantas. Poucas, porque o havia para dizer (e não dizer) foi praticamente dito ao longo das últimas quatro décadas.

Por isso, não se espere encontrar controvérsias ou arrependimentos neste Relatório de Combate. Apesar de alguns mea culpa — como o de Guterres e a "mula da cooperativa", "não foi correcto e penitencio-me", escreve —, o relato longo e exaustivo é muito a vontade do autor em justificar as políticas e o estilo que adoptou.

"O jardinismo pôs a Madeira no mapa, quer em questões nacionais e europeias, quer na organização institucional da nossa comunidade emigrante. E não esqueçamos as sucessivas vitórias eleitorais concludentes com que o jardinismo honrou o PSD", escreve, justificando os sucessivos confrontos com Lisboa e com a direcção nacional do PSD com a defesa dos legítimos direitos dos madeirenses. "Por mim, até gosto do termo jardinismo. Mas tudo isto não foi obra de um homem só."

No livro, que Jardim tinha dito ao PÚBLICO que estava a ser escrito em "jeito de romance", há um desfilar de dados estatísticos para sustentar o antes e o depois da chegada ao poder e legitimar a dívida contraída pelo arquipélago que Jardim rejeita, como sempre rejeitou. "A dívida da Madeira não existe. Existe, sim, uma dívida do Estado português ao povo madeirense, após cinco séculos de sonegação colonial de quase todo o valor criado pelo trabalho produtivo da população da Madeira e de Porto Santo", argumenta.

Neste Relatório de Combate, o ex-presidente madeirense fala do relacionamento que teve com os principais actores da democracia. Álvaro Cunhal é descrito como "uma pessoa interessantíssima, culta, muito bem-educada", revelador da origem de classe na alta burguesia. "Tinha um certo espírito de humor, mas era sempre formal na conversa (...), nada que ver com aquele Álvaro Cunhal que, com outro ar mais proletarizado, gritava a ‘cassete’ na televisão e nos comícios", recorda.

Francisco Sá-Carneiro, Marcelo Rebelo de Sousa e Cavaco Silva ficam, naturalmente, bem na fotografia que Jardim faz. O fundador do PSD foi único político de quem foi "incondicional" e Portugal seria hoje muito diferente, se Sá Carneiro não tivesse morrido. "Até ao momento em que escrevo estas linhas, o Estado português revelou-se impotente para esclarecer os portugueses sobre o que de verdade aconteceu. Também entendo em consciência não me pronunciar, o resto vai comigo", escreve.

Para Cavaco Jardim guarda elogios, desmistificando o episódio do "sr. Silva". "Cavaco, antes da queda do Governo, havia escrito um artigo arrasador da política de Santana Lopes", justifica, dizendo que o artigo o indignara por pôr em causa um governo social-democrata. "Foi então que, referindo-me a Cavaco Silva, eu disse que o ‘sr. Silva’, pelo que estava a fazer, era passível de sanções disciplinares no PSD. Até ao dia de hoje, sempre que certa comunicação social julga poder-nos pôr em confronto, lá vai buscar a tal referência minha ao ‘sr. Silva’."

Quanto a Marcelo, embora rejeite para já avaliar a sua presença em Belém, Jardim fala de uma pessoa "muito exigente", de "comprovadíssima" inteligência. "Tínhamos de estar 24 horas de serviço. Eu devia atenções a Marcelo, que de resto tem a primazia intelectual, cultural e humana que se lhe reconhece."

Em contraponto abundam no Relatório de Combate críticas ferozes para as lideranças da oposição madeirense e para os inimigos de estimação: José Sócrates e Pedro Passos Coelho.

A Sócrates, de quem se aproximou, com as enxurradas de Fevereiro de 2010 em pano de fundo, Jardim dedica seis capítulos. O primeiro, "Sócrates contra a Madeira", é elucidativo. O ex-primeiro-ministro socialista é retratado como um "inimigo" da região autónoma, que tudo fez para o afastar do poder. Ironicamente, quando conseguiu — Jardim pediu a demissão e convocou novas eleições em 2007, para "legitimar" a governação —, Sócrates não terá gostado. "A 2 de Março, faz-se o indispensável Conselho de Estado para o processo avançar. (...) À saída, enquanto eu ficava a falar com o Presidente da República, Sócrates, já no pátio, fazia uma cena, dizendo aos gritos que nós, na Madeira, éramos loucos", adianta.

De Passos Coelho fala de um tempo de "austericídio" do país e não lhe perdoa nunca ter reconhecido as vitórias que ele, Jardim, deu ao partido.

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Alguns momentos

 

Presidenciais com Champalimaud

Jardim assume que foi várias vezes desafiado para concorrer a Belém, uma delas por António Champalimaud. Estava de férias no Porto Santo, no Verão de 1985, e foi o "escritor e publicista" Paradela de Abreu quem primeiro transmitiu o recado do empresário, que queria apoiar financeiramente a candidatura. "Acabei por visitar António Champalimaud na sua casa em Lisboa, numa rua próxima da Lapa, para lhe agradecer a atenção e a confiança, mas explicando-lhe que o dinheiro, só por si, não bastava para o sucesso de uma campanha dessa natureza: era indispensável — então talvez mais do que agora — o apoio de uma máquina partidária. E Cavaco já escolhera Freitas."

Bastidores dos congressos

Foi Jardim, assinando por quatro, que viabilizou a candidatura de Cavaco à liderança do PSD. Como foi Jardim, que dez anos depois, em Lisboa, tentou evitar que Nogueira chegasse à presidência do PSD, promovendo uma aliança entre Durão e Santana. "A certa altura, faltavam ainda quatro assinaturas no documento de proposição [de Cavaco]. Eu, que estava sentado com o grupo, fico uma fúria ante a aselhice do impasse, ‘dêem-me isso’, e assinei por quatro congressistas do PSD-Madeira", recorda Jardim, que em 1995 levou Barroso e Santana para trás do palco. "Entendam-se para bem do país e do partido. Deixo-vos a sós." Do outro lado do palco, vi Nogueira, à pressa, espreitar esta cena."

Sucessão

Sem nunca referir directamente Miguel Albuquerque, que lhe sucedeu na liderança do partido e do governo, Jardim é bastante crítico. "É próprio da incompetência refugiar-se no dizer mal dos que antes deram provas", escreve a certa altura, falando depois de uma "incapacidade" em unir o PSD-Madeira, assente numa "patologia obsessiva" e "impreparação".

Jardim responsabiliza a actual liderança social-democrata madeirense de ter fracturado o partido, provocando o desaire nas autarquias 2013, quando o PSD perdeu sete das 11 câmaras municipais na região autónoma.

Cavaco e os jornais

 O homem que não lia jornais afinal até aos desportivos deitava o olho. Quem diz é Jardim, que recorda um episódio que envolve o seu braço direito, Jaime Ramos. O União, clube a que o secretário-geral do PSD-Madeira presidia, estava em risco de descer de divisão, e Ramos foi para os jornais dizer que a responsabilidade era de o Farense ser protegido pelo então primeiro-ministro, Cavaco Silva.

"Em São Bento, o professor havia-me falado da sua insatisfação com as declarações de Jaime Ramos. Eu, para amenizar, perguntei-lhe: "Mas o senhor também lê os jornais desportivos?!" Foge-lhe a boca para a verdade e exclama: "Eu leio tudo!"

FA efeminadas

A festa anual do PSD-Madeira sempre foi fértil em polémicas. Desde tiradas separatistas a promessas de pontapés em primeiros-ministros, tudo se ouviu. Em 1978, o alvo foram os militares do Conselho da Revolução. "Referindo-me a eles, disse que a sua impotência dava-lhes um ar de ‘forças armadas efeminadas’", recorda, acrescentando que a frase foi retirada de contexto e colocada como se fosse dirigida a todos os militares. Um deles, o coronel Carlos Lacerda, comandante do Regimento de Infantaria da Madeira, pede uma audiência no dia seguinte. "Ao abrir-lhe a porta, ele manda-me um soco de surpresa, que ainda me apanhou de raspão, gritando: ‘Os outros são, eu não sou!’"

Sampaio e a única derrota

Foi com Jorge Sampaio na corrida a Presidente que Jardim teve a única derrota na Madeira. O candidato apoiado pelos PS venceria na Madeira em quatro concelhos, o suficiente para obter 51,01% dos votos, contra 42,41% de Ferreira do Amaral. "Na generalidade, eu considerava positiva a primeira presidência do dr. Jorge Sampaio e, especificamente, também em relação à Madeira. Por isso, não o afrontei nestas eleições, embora apoiando e estando lado a lado com Ferreira do Amaral", conta Jardim, dizendo que explicou isso mesmo a Sampaio, quando ele visitou o Funchal em campanha. "Foi a única vez que perdi uma eleição em que dei a cara, pois, mesmo no mau resultado das autárquicas de 2013, o PSD foi ainda o partido mais votado no arquipélago."

 

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