Navegar à bolina entre o direito comercial e o direito penal
O Ministério Público não pode condenar nem absolver.
Prevê a lei que o Ministério Público (MP) profira despacho de arquivamento de um inquérito criminal em duas situações: na primeira, quando conclui que não houve crime ou que o arguido não o praticou e, na segunda, quando não conseguiu obter indícios suficientes da existência de crime ou de quem foram os seus autores agentes.
Isto é, nos termos da lei processual em vigor no nosso país, o MP, ao arquivar um processo, pode ter concluído que o arguido não praticou o crime (não estava lá, era impossível, tem um álibi inatacável), ou não houve mesmo crime (o objecto roubado, afinal estava guardado noutro lugar) e arquiva nos termos do n.º 1 do Art.º 277.º do Código do Processo Penal (CPP); ou pode ter concluído que os indícios que recolheu, seja da existência do crime, seja de quem o praticou, não foram suficientes e arquiva nos termos do n.º 2 daquele mesmo artigo.
No caso do processo em que era arguido, entre outros, o ex-ministro e ex-conselheiro de Estado Dias Loureiro, o MP arquivou o processo expressamente nos termos do Art.º 277.º n.º 2.º, isto é, não conseguiu obter indícios suficientes da prática de crime, mas não concluiu que não existia crime, nem que os arguidos no processo não o tinham praticado.
No seu despacho de arquivamento, a titular do processo não se limitou a afirmar que os indícios que conseguiu recolher eram insuficientes, seja para constatar a existência de algum crime, seja para poder afirmar quem o praticara e foi mais longe. Fez constar as suspeitas que continuaram a atravessar o seu espírito no fim do processo: de uma forma simplista, que as complexas operações financeiras mais não foram do que uma cortina de fumo para tirar dinheiro do BPN em benefício dos arguidos.
Sendo certo que a titular do processo sempre teria de explicar os fundamentos para ter arquivado nos termos do Art.º 277.º n.º2 do CPP, a verdade é que o podia e devia ter feito com mais rigor e elegância. Mas, contrariamente ao que muitos disseram, seguramente, na maior parte, sem terem lido o despacho de arquivamento nem conhecendo a lei, o Estado de direito não está em causa por esse excesso de redacção. A verdade é que as fundadas suspeitas que deram origem ao processo, no fim do mesmo, não se terão dissipado. É lamentável, mas não me parece que, à partida, tal facto seja da responsabilidade do MP.
Fácil é de intuir que foi certamente com muita dificuldade que foram recolhidos os indícios insuficientes, dado o número de offshores envolvidos e a complexidade das operações efectuadas. Na verdade, embora o ex-ministro em causa tenha afirmado ser um negócio “simplicíssimo de perceber”, a mera leitura das 99 páginas do despacho de arquivamento revela — para uma pessoa de inteligência média, é certo — que a arquitectura das operações e das decisões envolvidas nada tem de simples. A certa altura, a imagem que me ocorreu foi a da situação de uma pessoa que, afirmando querer simplesmente ir do Largo do Rato ao Marquês de Pombal para ganhar milhões, fez questão de passar por Setúbal ou por Fornos de Algodres, mudando de veículo várias vezes, distribuindo elevadas verbas nos apeadeiros e, conseguindo, no final, não chegar ao Marquês de Pombal e perder milhões! Como dizia um advogado amigo, a sensação é a de que se andou a navegar à bolina entre o direito comercial e o direito penal.
Lamentavelmente, segundo a revista Sábado, que conta um picaresco episódio de entrega de 1,5 milhões de dólares em notas nas instalações do BPN na presença do ex-ministro Dias Loureiro, nunca poderemos conhecer uma parte substancial do processo, uma vez que 1138 folhas, das 2830 que constituem o mesmo, não podem ser consultadas por decisão do DCIAP, que igualmente proibiu a consulta dos anexos e apensos do processo, numa decisão muito provavelmente ilegal, dada a sua extensão, e que não nos permite, provavelmente, vir a saber coisas tão simples como quanto tempo esteve o processo parado e porquê, ou quais as exactas dificuldades com que se deparou a investigação. Parece-me que seria importante percebermos o que se passou nestes oito anos de investigação.