Júlio Henriques existe e é um delírio
O pudor e a militância fizeram-no chegar só agora. Tradutor, editor, agricultor, escreveu uma sátira ébria sobre a actualidade a partir do mundo rural. Alucinar o Estrume é também a história do seu autor, homem à margem que acha o mundo tragicamente ridículo.
O fascínio tem uma explicação: “Uma pessoa levanta-se. O tempo pode estar até um pouco nebuloso, aquela neblina matinal que confere um ar diáfano à paisagem. Não se vê tudo com clareza, mas, a pouco e pouco, vai aparecendo a silhueta das árvores no montado, sobreiros e carvalhos, e criando como que figuras. A essa hora matinal, aparecem lebres e raposas que a cadelita da casa já não consegue caçar. Se o vento não denunciar a presença humana, as raposas aproximam-se. Acontece entre as seis e as sete da manhã. A luz vai ficando forte e há uma enorme amplitude de céu. Muitas horas depois, na ausência de luz exterior, a noite vê-se.” A voz de Júlio Henriques tem um tom baixo, os braços estão apoiados sobre o tampo da mesa e por vezes leva as mãos ao rosto enquanto fala do estado de encantamento em relação ao campo. Não romantizado nem beato, ciente das contradições, mas ainda assim resistente. Enquanto fala, nada nas palavras ou no modo de estar indicia o olhar satírico que tem sobre o mundo e que transportou para Alucinar o Estrume, série de textos atravessados pela figura de Estevão Vao, um “contemplativo em acção”, homem da cidade que foi viver para o campo e serve ao escritor para evidenciar o enlevo, mas também o ridículo e o grotesco da ruralidade onde o urbano entra sem cerimónia.
A paisagem de Júlio Henriques, 67 anos, agricultor, criador de cavalos, tradutor de Max Aub, George Orwell, Albert Cossery, Guy Debord ou Louis Aragon, fica entre Portalegre e Castelo de Vide, mas assume um carácter universal enquanto justificação para o seu modo de vida: a defesa do campesinato, numa perspectiva estética um pouco à imagem do pensamento do escritor, crítico e pintor britânico John Berger (1926-2017). No entanto, filtrada literariamente pelo teatro do absurdo que lhe ficou das leituras de adolescência. “Berger é uma inspiração”, afirma, rejeitando comparações, numa timidez que se vai dissipando ao longo da conversa. “Impressionou-me a trilogia sobre o mundo camponês” - refere-se aos três romances que compõem Into Their Labours (década de 80), onde Berger escreve sobre os efeitos das políticas económicas contemporâneas na criação de uma nova pobreza urbana e o impacto no mundo rural. “Achei excelente a arquitectura das histórias, a forma como aborda as pessoas tipicamente da aldeia, que ele conhecia e de quem foi amigo, e depois as outras, as que já estão noutro plano, que saem, migram, apanhando os vários tipos de psicologia de cada personagem. É muito poético.”
A biografia de Estêvão Vao
Essa poética já estava presente no primeiro livro de Henriques, Deus Tem Caspa, conjunto de textos críticos sobre a mitologia portuguesa e os efeitos do capitalismo no quotidiano. Publicado pela Fenda em 1988, foi reeditado pela Antígona em 2014. Em Alucinar o Estrume, Júlio Henriques cruza essa poética, que tal como em Berger vem da sua experiência rural, com a influência telúrica de Miguel Torga, ou o delírio de Albert Cossery, e nasce qualquer coisa de singular materializada na personagem de Estêvão Vao e no seu modo nómada de viver.
A biografia da personagem vai sendo dada ao longo do livro, mas há uma espécie de bilhete de identidade em nota de rodapé. “De seu nome completo Francisco Hermes Estêvão Vao (do antigo ramo dos Vaos, ou Vaus, de Entre Douro e Minho) de Alecastre Reboredo e Souza. Inspirado na obra do grande geógrafo anarquista Élisée Reclus, aplicou a parca fortuna que lhe coube em herança em infindáveis caminhadas de naturalista, que o levaram do Norte da Galiza ao Levante, e daí, depois, a todo o litoral mediterrânico, o que lhe deu uma invejável estrutura muscular de caminheiro, deslocando-se a pé por todo o lado.”
São dezanove histórias, cada uma antecedida de uma ilustração de José Miguel Gervásio, mais um texto de apresentação de Estêvão por uma “dilecta amiga” que lhe observa a casa. “Lá está o fumo encaracolado a sair da chaminé, lá estão as secretas mensagens que embelezam o ar e o perfumam. (…) Na cozinha é um mistério. Sozinho, come pão com azeitonas, mas só coisa boa, regada a tintos caseiros. Porque nisso ele é exigente: pouco mas do melhor.”
“… do melhor que há no campo”, precisa Júlio Henriques, que apesar de escrever desde a adolescência sempre menosprezou essa faceta e atribui a criação de Estêvão ao acaso e a uma realidade que conhece: a dos neo-rurais. “Ele é ficcional, mas é representativo de uma parte destas pessoas que têm saído da cidade para ir viver no campo. São dissidentes da cidade que passam a ter actividades relacionadas com o mundo rural, essencialmente agricultura e artesanato. Este livro é o resultado da experiência que tenho tido desde os anos 80. Acompanhei esta mudança em Portugal. Muitas vezes são rupturas muito fortes. Testemunhei isso na zona da serra da Lousã, onde vivi. A maior parte, alemães e holandeses. Vi-os em acção, a trabalhar na recuperação de aldeias abandonadas há mais de 30 anos. Vivi numa delas e ajudei a recuperá-la. Era preciso muita perseverança, capacidade física, não deixar aparecer a ideia de desistência”, conta, esclarecendo que alguns dos textos do livro foram aparecendo no boletim de uma associação que se dedica à recuperação de sementes tradicionais em vias de extinção.
Luís Oliveira, editor da Antígona, desafiou-o para os trabalhar em livro. “Se não fosse ele isto não existia”, refere, temendo que literariamente o resultado tenha “ficado um bocadinho ao lado” e assumindo, finalmente, que quer continuar a publicar depois de ter criado esta personagem síntese de pessoas com uma distracção concentrada. Ou seja, “que se fixam num determinado assunto e a absorção que esse assunto provoca é tal que leva-os a ser distraídos”.
É esta a característica que permite a entrada da ironia, do delírio, da facécia literariamente eficazes que aprendeu e cultiva, aplicando-os ao mundo onde vive e revelando-o numa gargalhada trágica e uma voz pouco comum nas letras contemporâneas em Portugal. A parceria entre agricultura e turismo, a higienização das aldeias, as hortas pedagógicas, tecnologia, a normalização de comportamentos, tudo é exposto ao ridículo, por vezes num tom que lembra Alberto Pimenta, a partir do nomadismo e da distracção de Estêvão, habitante de um quotidiano moldado por regras europeias e autarcas sedentos de receitas.
À margem
Júlio está sentado de costas para uma janela grande na cave de uma livraria anarquista na Penha de França, em Lisboa. O rosto está na sombra. À luz, as mãos. Têm calos de escrita e do campo. Falta menos de uma hora para a apresentação do livro, a primeira ficção, mas parece ausente desse momento. Ainda lhe faz confusão ser apresentado como Júlio Henriques, escritor? "Sim. Faz.” Então quem é? “Alguém que como Estevão Vao saiu da cidade, vive no campo e vive de biscates. Nunca fiz uma carreira.” Também teve uma 4L, como Estêvão, mas garante que a autobiografia acaba aí.
Há uma explicação política para este alheamento. “A escrita e quase tudo o que definiu a minha vida têm que ver com a militância.” Olha as mãos e depois olha de frente e os olhos são de um verde que tornam o rosto jovem. E também, acrescente-se, o descaso face à ideia de uma carreira literária. Tradutor, agricultor, escritor, nenhuma definição é tão bem aceite por Júlio Henriques como a de libertário. “Libertário é um sinónimo de anarquista, só que entre nós e em Espanha essa definição tem qualquer coisa de mais amplo, e quando se fala em literatura essa amplitude é maior ainda. Por exemplo, está ali um Ginsberg”, aponta para uma estante, o livro de um dos fundadores do movimento beat, o poeta nova-iorquino Allen Ginsberg. "Ele era um libertário, só que nos Estados Unidos era visto como um anarquista. Repare, não é um eufemismo em relação a anarquismo, é um sinónimo.”
Nasceu perto de Coimbra e viveu em Coimbra em miúdo e durante a adolescência. A militância começou na adolescência, quando escrevia poemas para o suplemento juvenil do Diário de Lisboa. Aos 17 anos fugiu de casa. Foi para Aveiro, juntou-se a uma companhia de teatro amador ligada ao movimento de oposição e a primeira peça em que participou foi À Espera de Godot, de Beckett. Era actor, escrevia, fazia de tudo e, para pagar as contas, arranjou trabalho como arquivista num escritório. Nunca fora tão forte a sensação “de que vivemos numa sociedade altamente ridícula, e até mais: grotesca”. O rosto ilumina-se. “Achei aquele universo espantoso. Era um teatro fabuloso diante dos meus olhos. Estava sozinho no arquivo e até podia ler. Comecei a escrever uns textos de tipo teatral e fui indigitado para me ocupar do jornal da empresa. Falava com pessoas, fazia gravações de diálogos e captava aquela linguagem e o conteúdo. Eram tão fascinantes, tudo muito miudinho.” Foi em 1967, 1968. “Contavam a visita de um tio, o que tinha acontecido com os pais, tudo extremamente pormenorizado. Escrevi sobre isto com uma intenção satírica no jornal da empresa. Na altura, um dos meus autores preferidos era o Ionesco; estávamos a ensaiar A Cantora Careca e era muito inspirador. Publiquei o primeiro texto no jornal e fiquei à espera de reacções, disposto a ser despedido. Aquilo era de tal ordem estranho e empobrecedor que o estímulo que encontrei foi este. Mas não houve reacção. A ironia não entrava naquelas pessoas.”
Lia teatro, história do teatro, os livros dos grandes clássicos, encenadores. “Os meus amigos tinham boas bibliotecas e não precisava de comprar”. E ao mesmo tempo lia muito romance, “sobretudo portugueses, os que vinham do neo-realismo”. Tinha um conhecimento vago do surrealismo. "Uma das primeiras antologias que o Mário Cesariny organizou causou-me grande impacto, tinha textos de Artaud, que era um dos autores que trabalhávamos, e Beckett enchia-me as medidas”.
Aos 19 anos desertou. Foi para França. “Frequentei vários cursos, sempre ligados à literatura, numa universidade, mas estava muito implicado na militância e nunca terminei nada.” Continuou no teatro e na política e juntou-os. “Com um grupo de amigos, entre eles o Hélder Costa [encenador e dramaturgo], criei um grupo de teatro de agitação. Pretendia politizar os emigrantes.” Ri, o primeiro grande sorriso. "Foi uma experiência interessante e ao mesmo tempo um bocado frustrante.” Trabalhou numa tipografia, escreveu para o Comércio do Funchal e no 25 de Abril voltou a Portugal.
É difícil fazer a síntese deste período formador onde a doutrina ensinava que viver era manter-se à margem. “Tínhamos a ideia de que devíamos ser dissidentes. Era elementar. Não fazer carreira académica, universitária, literária, nada disso. Viver-se de biscates, à margem. Pressupunha que só nessas condições é que se podia ter autoridade crítica: não entrar no sistema e poder sempre olhá-lo de fora, criticá-lo.” Encolhe os ombros. “Teoricamente… Tudo isto é contraditório, mas teve um peso enorme em mim e em muita gente.” Fica clara a razão pela qual nunca considerou a literatura como investimento pessoal. Havia pudor, “mas também um certo asco ao meio literário. Comecei a aperceber-me de uma série de coisas, de tiques... Sempre me foram insuportáveis as pretensões, o egotismo muito marcado por vezes.” Que tiques? “A maneira de falar, um certo pretensiosismo, como por exemplo só se falar através de alusões constantes a obras e a autores. Isto pode ter sido da minha parte uma reacção um pouco idiota, Mas foi a que tive.”
No pós-25 de Abril voltou ao teatro, fundou um colectivo libertário. "Todos tínhamos passado pelo PCP e deixado isso para trás". O percurso político do país alterou-se. As pessoas dispersaram-se. Voltou a França em 1979. Aproximou-se dos surrealistas. Conheceu o mundo da edição. Outra vez em Portugal, foi viver para uma aldeia perto de Coimbra e conheceu Vasco Santos, o fundador da Fenda. Fizeram projectos juntos. A cidade estava perto e ele entregara-se à vida do campo onde os mais velhos lhe ensinaram outra dimensão do tempo, a ele, um distraído com o tempo. Recomeçou a escrever. Publicou um livro de poesia com o pseudónimo Alice Corinde. O nome ficou até hoje como um eco. De tal forma que há quem pense que Júlio Henriques não existe, mas é Júlio Henriques, o autor de Alucinar o Estrume, quem diz, na sua voz calma, firma e num tom mundo baixo. “Sim, Alice Corinde sou eu.” É o princípio da história de Júlio Henriques, escritor.