Um palco, três grupos, contra um estigma: a doença não faz deles "incapazes"

Esta terça e quarta-feira, às 19h30, a Sala 2 da Casa da Música abre portas a um concerto de um grupo cheio de diferenças e que faz da música terapia.

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Paulo Pimenta
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Quando chegaram à Casa da Música, no final de Janeiro, não havia pautas, nem letras. Nada que se assemelhasse a um espectáculo. Aurora foi construído com as ideias de cada um, foi feito um espectáculo por todos: pelos músicos — alunos do curso de formação de animadores musicais da Casa da Música —, por utentes da Associação Nova Aurora de Reabilitação e Reintegração Psicossocial (ANARP) de pessoas com doença mental e por membros da Tuna de Tecnologia da Saúde do Porto (Tuna TS), da Escola Superior de Saúde do Politécnico do Porto. Esta terça e quarta-feira, às 19h30, a Sala 2 da Casa da Música abre portas a um concerto de um grupo cheio de diferenças que fez música em conjunto.

Aurora é o nascer do Sol. A guitarra do maestro Paul Griffiths começa num som seco, embalado. É acompanhada por outras guitarras (as clássicas, a portuguesa, a braguesa) e por bandolim, violoncelo, violinos. A música é quase sussurrada. Este é “o momento em que ainda é escuro, imediatamente antes de entrar o sol”, explica o maestro.

“Vocês ouvem as vozes fazer algo?”, pergunta Paul Griffiths. Ninguém está a cantar, mas faria sentido que o fizessem? Cantar o quê? Espera que alguém responda, que outros acrescentem sugestões. No espectáculo Aurora é assim que letras e melodias são criadas.

Quando o som crescer, o dia nasce. Para Manuel Couto, utente da ANARP há dois anos, é uma metáfora bonita: "Cria esperança na pessoa de um dia melhor, de uma vida melhor". É como se também na vida dele o crescendo da percussão fosse “um dia melhor que começa”.

Habituado a outros palcos, Manuel Couto, 32 anos, reencontra-se com a música. Toca órgão, bateria, guitarra e baixo. Foi autodidacta na guitarra clássica, membro de uma tuna. No intervalo, foi “apanhado pela doença”. Agora aprende da forma que mais gosta: numa sala cheia de músicos e colegas. Refere-o várias vezes neste sábado, tarde de ensaios na Casa da Música: é a interacção com os outros que o faz vir sempre e nunca querer ir embora. "É no palco que me sinto bem".

Catarina Martins, de 36 anos, lê um poema durante o espectáculo. “Senti-me à vontade para chegar à frente e partilhar o que escrevia”. Fala sobre "ser livre e ser eterno, morrer ou ficar, ficar ou partir". Fala sobre si e os dez anos, “mais coisa menos coisa”, em que está na associação. Com uma doença mental prolongada, a luta é constante.

"Chega-te para o sol"

Tudo começou há dois anos e meio com Contratempo, o projecto que colocou os estudantes da Tuna TS e os utentes da ANARP a criarem música juntos. Começaram com encontros informais, até as sessões terem hora marcada, todas as semanas. Em Janeiro de 2016, o financiamento do programa Partis - Práticas Artísticas para a Inclusão Social — da Fundação Calouste Gulbenkian foi o impulso que faltava para encontrarem novos parceiros.

Foi nesta fase que o projecto alargou os contactos à Casa da Música, cresceu para a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE), onde os utentes têm aulas semanais de expressão musical, e para a Escola Superior de Media Artes e Design (ESMAD), responsável por uma exposição fotográfica e um documentário sobre o projecto. 

Em palco, está quase a nascer o dia. Soam as platinelas do pandeiro e de uma assentada a percussão, que ocupa todo o lado esquerdo do palco, toma a dianteira. “Chega-te para o sol/Chega-te para o sol, vem daí”, canta o coro.

Entre os 14 utentes da ANARP em palco, há quem toque guitarra, bateria, bombo e xilofone, há quem cante. Há depressões, ansiedade, esquizofrenia, autismo, transtornos de personalidade. Doenças não raras: estima-se que em Portugal 800 mil pessoas sofram de depressão. Ainda assim, muitas vezes, escondidas. Estigmatizadas. A doença não faz deles "pessoas agressivas, nem incapazes": é evidente para Raquel Simões de Almeida, terapeuta ocupacional da ANARP, quando olha para o palco. O espectáculo é "a prova viva" disso. É um combate contra o estigma e uma ajuda na recuperação. Estar em palco faz parte da terapia.

Ali, a música é o veículo para trabalhar competências para inclusão social: o cumprimento de horários, a adaptação a novos lugares e novas pessoas, a concentração, a memória. Nota-se? Hélio não levanta os olhos do bombo do início ao fim da música. Pedro não se acha descoordenado atrás do xilofone. António, sentado em frente às teclas, começou a ter aulas de piano. É deles que dizem “que são incapazes de se concentrar?”, questiona Raquel.

No final, grupo reúne-se à volta do piano. Pete Letanka, também maestro, ensaia a última música: “All my troubles are gone/From now on/Sunrise” (“Todos os meus problemas desaparecem, a partir de agora”). É o nascer do sol.

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