Guterres, há 100 dias na ONU sem estado de graça

Guterres fez mudanças radicais no dia em que chegou à ONU e deu início a sete reformas logo nas primeiras semanas. Numa coisa, o staff, Trump e o mundo estão de acordo: exigem uma ONU melhor. E já em 2017.

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Guterres já disse que a prevenção dos conflitos não é uma prioridade, mas “a” prioridade Denis Balibouse/Reuters

Lançou um plano para reformar o organigrama da ONU, mudou procedimentos internos, adoptou novas políticas e fez mais de 20 viagens. António Guterres não parou um segundo nestes primeiros 100 dias como secretário-geral das Nações Unidas. O contraste com o seu antecessor, o sul-coreano Ban Ki-moon, joga a seu favor. Mas a diferença tem um reverso: as expectativas são altíssimas.

Tanto no seu papel de CEO como no de chefe da diplomacia global, o secretário-geral português está pressionado por todos os lados: pelo seu staff, pelos Estados-membros e pela nova administração de Donald Trump, anti-multilateralista e hostil às Nações Unidas. Todos exigem mudanças profundas e rápidas.

Ao fim do seu primeiro ano na ONU, Ban Ki-moon enviou um memo interno a esclarecer como deveria ser chamado: “Sr. Ban” e não “Sr. Ki-moon”. O episódio representa a imagem que deixou junto de muitos funcionários, mesmo de entre os que elogiam o seu trabalho na área das alterações climáticas, da juventude e da sustentabilidade. “Ban veio a seguir a Kofi Annan e por isso todos estavam preocupados”, diz um alto quadro asiático da ONU. “Guterres vem a seguir a Ban e por isso todos têm esperança.”

Guterres foi eleito no processo mais transparente de sempre, o que lhe dá uma legitimidade comparativa extra. Além disso, foi uma voz incómoda como alto-comissário para os Refugiados, criticando países de forma explícita. Esses dois factores explicam a forma irrealista com que muitos olham para o seu mandato. “Guterres é um homem brilhante, que compreende e conhece os dossiers — e nós já não estávamos habituados a isso!”, diz um diplomata do departamento de assuntos políticos. “Mas estes não foram 100 dias de glória esplendorosa. Foram 100 dias cautelosos e marcados por um esforço consciente de não querer fazer statements grandiloquentes até saber bem que direcção vai tomar.” O discurso do Cairo, que omitiu os problemas de direitos humanos no Egipto, é dado como exemplo. As controvérsias em torno de Israel são outro.

Os EUA são, em parte, responsáveis por isso. “Estes 100 dias foram dominados pelo facto de Guterres ter de enfrentar Trump. Todo o staff tem Trump na cabeça. Guterres teve azar. Ban teve Obama, o Presidente mais pró-ONU da história. Guterres tem Trump.”

Abanão logo à chegada

O antigo primeiro-ministro português começou o seu mandato com um memo que gerou razoável agitação interna, tanto em Nova Iorque como nas missões no terreno. A nota enviada a 3 de Janeiro é dirigida aos 36 líderes do sistema — os subsecretários-gerais e os directores das agências — e diz que a resposta da ONU aos problemas de paz e segurança é “fragmentada” e a performance na prevenção de conflitos é fraca. Como primeiro passo, decide que todas as divisões regionais dos departamentos políticos (civis) e das operações de manutenção da paz (militares) devem passar a trabalhar no mesmo espaço e partilhar escritórios. O objectivo é tornar o processo de decisão e implementação “mais eficaz e integrado”.

Para além disso, Guterres pediu a três subsecretários-gerais — dos assuntos políticos (americano), das operações de paz (francês) e do apoio das missões no terreno (indiano) — para aplicarem a ideia de partilha dos escritórios a outras “valências”, como o planeamento e os destacamentos rápidos.

Historicamente, a descoordenação é apontada como o grande calcanhar de Aquiles da ONU. As missões de paz são montadas com civis e militares de costas voltadas e, muitas vezes, até no terreno o diálogo é pouco fluido. Já o célebre “Relatório Brahimi”, que em 2000 provocou uma onda de choque e esperança nas Nações Unidas, fez recomendações neste sentido, entre as quais a criação de missões integradas.

Dezassete anos depois, Guterres encomendou agora o seu relatório de reformas estruturais para tentar tornar o Secretariado (a “administração pública” da ONU) mais ágil e eficiente. Desta vez, não há um “Relatório Brahimi” (de Lakhdar Brahimi, presidente do painel de 2000). Em vez de uma personalidade exterior, o estudo será feito por um alto funcionário do Secretariado, Tamrat Samuel, um etíope com anos de casa e a quem Kofi Annan entregou, entre 1992 e 2000, a então chamada “Questão de Timor”. Desta espécie de “Relatório Samuel” esperam-se, de novo, recomendações concretas e realistas.

Uma das ideias — já antiga mas agora em discussão acesa por toda a ONU — é, justamente, a possível fusão dos assuntos políticos (a diplomacia) com as operações de paz (os militares) ao nível do próprio Secretariado. “Há muitas pessoas que pensam que os dois departamentos devem ser fundidos, porque duplicam recursos e mandatos. A ideia é que deve existir um continuum entre uma operação de paz e uma missão política — normalmente, uma precede a outra — e que esta separação é artificial e produz cacofonias e disfunções”, diz um alto funcionário português.

Tamrat Samuel tem até Junho para entregar recomendações realistas. Se a pressão para mostrar resultados é grande, a partir do Verão será ainda maior, concordam os altos quadros da ONU de quatro continentes diferentes ouvidos pelo PÚBLICO. O diabo, claro, está nos detalhes. E ninguém sabe como, exactamente, vai Guterres materializar as promessas de tornar a ONU mais eficaz.

Mais mulheres e mais futuro

A 3 de Janeiro, Guterres enviou um segundo memo a anunciar a criação de um Comité Executivo, espécie de “conselho de administração”, que reúne 13 chefes uma vez por semana, substituindo o modelo de reuniões semanais de Ban Ki-moon, muitíssimo mais alargadas. As opiniões dividem-se. Há quem defenda que esta mudança já “melhorou, realmente, o processo de tomada de decisão política”; outros dizem que afastar tantos directores das rotinas semanais vai prejudicar as decisões. Numa coisa todos concordam: a marca de Guterres é estar “obcecado com tomar decisões”, como resume um alto funcionário africano.

Mal chegou, Guterres mudou também a estrutura do seu próprio núcleo duro, o gabinete executivo do secretário-geral (EOSG, na sigla inglesa), diminuindo-o e alterando o perfil. Deixou de ser “operacional” e passou a ser “estratégico” e a “pensar no futuro”, devendo estar “aberto a novas ideias e a visões discordantes”, lê-se no terceiro memo do início do mandato. Guterres montou também uma cúpula mais feminina, nomeando mulheres para cargos de topo. Três em particular: Amina Mohammed (Nigéria) é secretária-geral adjunta; Luiza Ribeiro Viotti (Brasil) é chefe de gabinete; e Kyung-wha Kang (Coreia) é conselheira política principal.

O foco de todos está na reforma da arquitectura da paz e segurança, mas Guterres lançou outros processos de reforma, incluindo o sistema de apoio ao desenvolvimento, o contra-terrorismo e os abusos e exploração sexual cometidos por funcionários da ONU, e adoptou uma nova política para os funcionários que denunciam colegas suspeitos de violações éticas (a chamada “protecção contra a retaliação dos informadores”). “O facto de ter lançado tantos processos logo nas primeiras semanas mostra que quer impulsionar mudança”, escreve Tanja Bernstein, analista do ZIF – Center for International Peace Operations, um centro de Berlim especializado em operações internacionais.

Guterres já disse que a prevenção dos conflitos não é uma prioridade, mas “a” prioridade. Sem mudar a casa por dentro, a ONU não consegue ser mais eficaz. É essa a leitura geral. Por isso, a última coisa de que precisa é de um corte drástico no financiamento dos EUA, o maior contribuinte (paga 22% do orçamento geral e 28,5% do orçamento das operações de paz). Guterres sabe que a ameaça de cortes é real. Aconteceu com Ronald Reagan nos anos 1980, com George Bush nos anos 1990 e com George W. Bush nos anos 2000. Tem, por isso, “dedicado muito tempo a abrir canais de comunicação e apoio dentro do Partido Republicano”, diz um alto funcionário. Já falou, pessoalmente e por telefone, com o senador republicano Lindsey Graham, presidente do subcomité para o Departamento de Estado e Operações Estrangeiras. Graham simboliza um dos seus desafios. Durante 2016 recusou apoiar Trump (não votou nele, nem foi à convenção do partido), mas perante a vitória anunciou um enfático “vou fazer tudo para o ajudar”. Hoje, a mensagem que Guterres recebe do Congresso americano é clara: se quer o apoio da Casa Branca, tem de fazer reformas significativas. A síntese de um alto funcionário da ONU português: “Este secretário-geral não vai ter período de graça.”

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