Na relação ONU-EUA, Guterres vai estar no arame

Com a entrada de António Guterres na ONU, há a pergunta clássica. Vai ser mais secretary ou mais general? Mas desta vez há uma pergunta nova. Trump vai entrar em guerra contra as Nações Unidas?

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Manif junto às Nações Unidas, no dia 28 de Dezembro, em Nova Iorque KENA BETANCUR/Reuters
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O anúncio que Trump fez publicar em 1987 em três jornais norte-americanos
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A 2 de Setembro de 1987, Donald Trump pagou 100 mil dólares para publicar em três jornais um anúncio de página inteira com uma “carta aberta ao povo americano”. Com o título Não há nada de errado com a Política de Defesa Externa dos EUA que um pouco de firmeza não cure, o texto saiu no New York Times, no Washington Post e no Boston Globe e gerou, na altura, especulação sobre as ambições políticas do jovem empresário nova-iorquino.

Trinta anos depois, quando a ambição política de Trump é indiscutível, a carta-anúncio é vista com outros olhos. Para alguns especialistas em relações internacionais, dentro e fora dos EUA, é a prova de que, em Trump, nem tudo é errático, insondável e improvisado ao sabor das últimas tendências do Twitter. E que, na verdade, algumas das suas ideias são antigas e consistentes. Se ninguém sabe exactamente o que vai ser a “doutrina Trump”, todos sabemos que o novo Presidente não acredita no multilateralismo e que há 30 anos defende o exacto oposto — o unilateralismo.

António Guterres — que começou o seu mandato como secretário-geral das Nações Unidas apenas 19 dias antes de Trump iniciar o seu na Casa Branca, uma coincidência que não acontecia desde 1953 — já contava com isso. O que Guterres não podia antecipar é que, a dias de calçar os novos sapatos, Barack Obama, quase a descalçar os seus, iria lançar uma bomba com repercussões profundas em Israel, mas também na relação dos EUA com a ONU.

A 23 de Dezembro, Samantha Power, embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, absteve-se na votação da resolução do Conselho de Segurança que exige o fim dos colonatos em Israel, depois de, há cinco anos, os EUA terem vetado uma resolução semelhante. Mal soube, Trump publicou um tweet: “Em relação à ONU, as coisas vão ser diferentes depois de 20 de Janeiro.”

Guterres sabe que o seu sucesso como secretário-geral e a sua capacidade de responder aos desafios e às crises internacionais dependem em boa parte da relação que os EUA estabelecerem com a ONU. E sabe também que, nos bastidores, congressistas e senadores do Partido Republicano já estão a estudar formas de retaliação contra o que consideram ser uma “inadmissível resolução anti-Israel”. As hipóteses vão do bloqueio do financiamento de tudo o que venha a ser feito para pôr em prática a resolução ao corte do financiamento americano a agências da ONU ou mesmo da quota fixa do orçamento operacional da organização.

Décadas de cortes à ONU

Estas não são meras hipóteses académicas. Há décadas que os Estados Unidos usam a sua força económica como arma política, seja para obrigar a ONU a mudar, seja para marcar posições de força.

Nos anos 1980, Ronald Reagan cortou o financiamento americano à UNESCO; nos anos 1990, George H.W. Bush congelou os pagamentos dos programas para a População e para o Desenvolvimento; e, nos anos 2000, George W. Bush voltou a congelar o pagamento à UNESCO, desta vez como resposta directa à entrada da Palestina, como membro de pleno direito, na organização que tem os pelouros da educação, da ciência e da cultura. Foi também com Bush-filho e também por causa da questão Israel/Palestina que os EUA saíram do Conselho da ONU para os Direitos Humanos. Depois da cruzada do republicano Jesse Helms, presidente do comité de relações externas do Senado nos anos 1990, os EUA chegaram a acumular uma dívida à ONU de 1,5 mil milhões de dólares.

Se Donald Trump abriu a toca aos supremacistas brancos e deu voz a todo o tipo de radicais, esta resolução contra Israel — aprovada com 14 votos a favor e a abstenção americana — e os breves comentários do Presidente eleito que se seguiram foram um estímulo para o lobby anti-ONU (para não falar dos que fantasiam sobre o perigo que os “helicópteros negros da ONU” representam para a segurança dos EUA). Quem há anos apresenta projectos de lei para mudar os pagamentos à ONU de modo a torná-los exclusivamente voluntários (e não automáticos e obrigatórios por lei, como é a quota anual do orçamento operacional) ou propõe que os EUA possam escolher a dedo os projectos a financiar (em vez de contribuírem para orçamentos gerais), ganhou um novo argumento para insistir na velha ideia de que a ONU não defende nem os “valores” nem os “interesses americanos”.

Guterres poderá explicar a Trump que é do “interesse americano” investir na prevenção e na manutenção da paz, tal como vacinar crianças em países pobres faz parte dos valores do seu país. Mas, sozinhos, os EUA pagam 22% do orçamento operacional das Nações Unidas — o máximo permitido pelas regras internas — e esse facto faz parte do discurso populista que o próprio Presidente eleito adoptou.

O cálculo é feito a partir do PIB de cada país e por isso a seguir aos EUA vem o Japão (9,6%), a China (7,9%), Alemanha (6,3%), França (4,8%), Reino Unido (4,4%), Brasil (3,8%), Itália (3,7%), Rússia (3%) e Canadá (2,9%). Além disso, os EUA pagam 28% do orçamento das operações de manutenção da paz e muitos outros milhões a diferentes agências e programas da ONU. Há anos que estes números são usados de forma demagógica. O lobby anti-ONU gosta de sublinhar o contraste entre os muitos milhões que os EUA pagam por ano e os oito mil dólares que pagam os 20 países do fim do ranking. Mas há outra forma de fazer contas: se a ONU custa 25 cêntimos a cada americano, custa 25 euros a cada cabo-verdiano.

Os trunfos de Guterres

Para a questão da “ONU esbanjadora”, Guterres tem um trunfo valioso. Quando se encontrar com Trump, o antigo primeiro-ministro português pode dizer, com propriedade, que vai fazer uma gestão mais eficaz e com menos custos, à semelhança do que fez como alto comissário para os Refugiados.

Nos seus dez anos à frente do ACNUR, a sede, em Genebra, passou a custar menos nove milhões de dólares por ano, em grande parte porque Guterres transferiu serviços cruciais da Suíça para Budapeste, para onde foram centenas de funcionários. Além disso, os custos com pessoal baixaram de 45% para 30%, muitos funcionários foram deslocados da sede para o terreno, e Guterres encomendou ao gabinete anti-corrupção da União Europeia e a um instituto independente alemão avaliações várias sobre a gestão e fornecimento de bens e serviços. Um outro factor pode ajudar na relação com Trump, embora esse seja um pau de dois bicos: como alto comissário, Guterres tornou-se uma voz incómoda, criticando países de forma frontal e aberta, nomeando-os até de forma explícita. Esse é um registo que Trump, o homem que quer combater o “politicamente correcto”, deverá valorizar.

A grande dúvida no entanto mantém-se. Os “novos” EUA, com Trump e um Congresso e um Senado republicanos, vão só querer anular a resolução contra Israel ou vão querer reorientar a relação com a ONU? Trump vai abrir uma guerra contra as Nações Unidas ou o discurso anti-ONU é apenas retórica de campanha eleitoral?

A ONU? "Que tristeza"

Trump disse muito pouco sobre a ONU, mas o que disse (melhor, o que tweetou) não é simpático, embora também não seja conclusivo. A seguir à resolução contra Israel, escreveu: “As Nações Unidas têm um potencial tão grande. Mas hoje são apenas um clube para as pessoas se encontrarem, conversarem e divertirem-se. Que tristeza!”. Mais tarde, quando os jornalistas lhe perguntaram se os EUA deviam sair da ONU, respondeu assim: a ONU tem de “resolver problemas” e não “criar problemas — se concretizar o seu potencial, é uma coisa óptima, caso contrário é uma perda de tempo”.

Não é por acaso que, nos meios diplomáticos, a primeira reunião Guterres-Trump é vista como “os 20 minutos mais decisivos” da vida do novo secretário-geral, como resumiu um embaixador português há umas semanas. Guterres quer encontrar-se com Trump “logo que seja possível” e, a manter-se a tradição, tal deverá acontecer já em Janeiro.

O que é a doutrina Trump?

O ponto de partida para esse encontro é claro: dois homens que em quase tudo estão em extremos opostos. Durante a campanha presidencial, Trump ameaçou sair do acordo de Paris sobre o clima, rasgar o acordo com o Irão, recusar a entrada de refugiados, criar regras especiais de escrutínio para muçulmanos e reintroduzir a tortura no combate ao terrorismo.

Na carta-anúncio de 1987, Trump assume-se já como um feroz unilateralista que quer uma política externa a pensar nos “interesses americanos” e defende que “a América deve deixar de pagar para defender países que têm dinheiro para se defenderem a si próprios”. Dá alguns exemplos: “Há décadas que o Japão se aproveita dos EUA”; “estamos a defender o Golfo Pérsico, uma área com uma importância marginal para os EUA por causa do petróleo que nos fornece, mas da qual o Japão e outros dependem quase totalmente”. “Porque é que estes países não pagam aos EUA pelas vidas humanas e pelos milhares de milhões de dólares que estamos a perder para proteger os seus [sic] interesses?”, continua o anúncio. A seguir, e num tom que se tornou familiar em 2016, Trump escreve: “Protegermos navios que não são nossos, e que transportam petróleo que não precisamos, destinado a aliados que não ajudam, faz com que o mundo se ria dos políticos americanos.” O que deveria a América fazer? “Ajudar os nossos agricultores, os nossos doentes, os nossos sem-abrigo.” No fim, diz: “Vamos fazer com que mais ninguém faça pouco do nosso grandioso país.”

Apesar da incógnita que representa, é seguro afirmar que o esqueleto da nova política externa norte-americana vai centrar-se em seis “ismos”: antimultilateralismo (desde os anos 1980 que Trump escreve contra a NAFTA e outros acordos internacionais); antiliberalismo; populismo; isolacionismo; unilateralismo (para alguns, “a” marca que Trump vai deixar); e transaccionalismo (a ideia de que Trump vai querer sobretudo fazer transacções).

Mas, antes da substância, Guterres vai ter de “saber falar com Trump, estabelecer uma ponte, uma química”, diz um diplomata português. E conseguir fazer isso sabendo que, como diz o velho ditado “onusiano”, os EUA gostam que o secretário-geral da ONU seja mais secretary do que general.

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