Este médico só tem doentes com centenas ou (até) milhares de anos

Não faz diagnósticos a doentes vivos. O que Francesco Galassi desvenda são as doenças de figuras históricas através de vários registos históricos. A partir de sábado/amanhã, está em Lisboa para quatro palestras sobre paleopatografia.

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O médico Francesco Galassi DR

Francesco Galassi não é um médico normal. Nunca chegou a conhecer os seus doentes. E não é por não querer contactar com eles. Mas porque as idades dos seus doentes vão dos 200 aos 2000 anos. O facto de já terem morrido não quer dizer que este médico italiano não lhes consiga fazer um diagnóstico. A sua escolha recai sempre em figuras históricas ou em personagens. No seu “consultório” já fez o diagnóstico ao imperador Júlio César ou a madame Tussaud. É uma questão de ler as suas biografias, cruzar várias fontes históricas e ter em consideração os vestígios corporais (caso ainda existam).

Nos próximos dias está em Portugal a falar do seu trabalho em quatro palestras: a 8 de Abril, às 15h, na Biblioteca Histórica da Ordem dos Médicos (Lisboa); a 9 de Abril, às 15h, no Museu Nacional de Arqueologia (Lisboa); a 10 de Abril, às 14h30, no Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz (Caparica); e a 11 de Abril, às 18h30, na Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves (Lisboa) sobre a síndrome de Stendhal.

“Sou médico, mas sempre fui fascinado pelo mundo antigo”, assim começa Francesco Galassi, de 27 anos, a contar sobre o seu interesse em diagnosticar doenças a personagens e a figuras históricas. Tudo começou no ensino secundário, quando tinha 14 anos, foi aí que começou a estudar o imperador romano Júlio César. Também começou a estudar línguas clássicas, grego e o latim, para poder ler os registos históricos originais. “Passei muito tempo a investigar história antiga e história da medicina”, recorda. Mas levou uns anos até vir a concluir o caso de Júlio César. Tinha de ter as ferramentas certas para tirar conclusões.

Gostava de medicina e história, e o seu caminho acabou por ser a medicina, licenciando-se na Universidade de Bolonha (Itália), onde esteve envolvido em trabalhos sobre colecções humanas anatómicas. Depois, rumou ao Reino Unido: na Universidade de Oxford e no Imperial College de Londres voltou a analisar a doença de Júlio César, desta vez a tempo inteiro e com o seu colega Hutan Ashrafian.

Agora, Francesco Galassi é paleopatologista no Instituto de Medicina Evolutiva da Universidade de Zurique, na Suíça. Tem estado a trabalhar no Projecto Paleopatologia Italiana, que estuda doenças antigas na Península Itálica. Neste momento, estuda casos retratados nos quadros de Piero della Francesca. E ainda em Janeiro deste ano foi um dos 30 cientistas com menos de 30 anos escolhidos para a Lista de Ciência e Saúde na Europa da revista Forbes.

E por que decidiu Francesco Galassi estudar as figuras históricas? “Tem-se pouca informação sobre estas personagens. Parte da informação, a bioinformação e os relatos dos sintomas das doenças, está completamente perdida no passado.” E o seu trabalho tem uma aplicação na medicina actual, ao fornecer dados da evolução das doenças ao longo dos tempos.

Nessa viagem no tempo, Francesco Galassi tem de combinar o maior número de fontes possíveis. Livros de história, correspondência, pinturas, literatura, biografias ou qualquer outro documento que forneça informação sobre a figura em estudo. “ [As biografias] têm tudo, desde paixões, conspirações políticas e até informação médica. Mas quando se descrevem os termos médicos, não se referem especificamente os termos científicos de saúde.”

Este tipo de estudo é a paleopatografia e é considerado um ramo da paleopatologia, que estuda as patologias em esqueletos e outros restos mortais antigos. “Considero a paleopatografia um apoio, e não uma substituição, para estudar as personagens antigas e famosas.” Além disso, Francesco Galassi usa ainda a paleossemiótica, que procura no estudo de fontes históricas os sinais de doenças.

E quais as dificuldades estes doentes tão antigos? “O maior problema é não se saber nada sobre eles. Os meus doentes já morreram há muito tempo.” Afinal, o seu doente mais velho viveu no Egipto Antigo e o mais novo é a madame Tussaud. Depois, há a dificuldade em interpretar todos os registos históricos, porque não são verdadeiros registos médicos. “Tenho sempre de reflectir se a informação está escrita por qualquer razão política.”

Nem sempre é possível fazer um diagnóstico. Um desses casos é o de Alexandre, o Grande. “Foi o único caso em que perdi imenso tempo, mas que não consegui”, assume. Os registos históricos são inconclusivos e não se sabe se os seus restos mortais foram destruídos ou não. “Gostaria de colaborar com os cientistas portugueses para estudar, por exemplo, os reis portugueses.”

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Fresco do deus Priapo DR

O deus Priapo tinha fimose

Priapo era o deus grego da fertilidade, filho de Afrodite e Dionísio, e considerado o guardador dos rebanhos ou dos produtos hortícolas. Era sempre representado com um pénis exagerado devido a uma vingança de Hera a Afrodite.

Em 2015, Francesco Galassi encontrou duas ilustrações deste deus na Casa de Vettii, em Pompeia. Uma até era normal, nada que suscitasse um diagnóstico, já a outra despertou-lhe interesse. Nesse fresco de Priapo vê-se um homem com um pénis bem grande. Francesco Galassi concluiu que tinha fimose, em que o pénis não pode ser retraído devido a um problema nas glandes, e hoje pode ser tratada por corticosteróides. Antes, era apenas tratada por circuncisão ou prepucioplastia. O médico italiano percebeu também que a fimose se tinha difundido na Itália antiga, entre os jovens e adolescentes da região de Campânia, onde fica Pompeia.

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O imperador Júlio César DR

Júlio César não era epiléptico

Foi um dos primeiros casos de Francesco Galassi, aquele que o afirmou como paleopatologista. Juntamente com o colega Hutan Ashrafian, do Imperial College de Londres, disse que as fontes históricas não permitiam concluir que Júlio César (100 a.C. a 44 a.C.) tinha epilepsia. Em vez disso, um dos maiores líderes militares terá tido um mini-AVC (um acidente isquémico transitório, em que o fornecimento de sangue para o cérebro é interrompido por um curto período de tempo). É que os sintomas descritos nas fontes históricas referem que, nas suas campanhas militares em Espanha e África, tinha enxaquecas, vertigens ou tonturas.

“Olhámos para várias fontes, usámos a racionalidade médica e fizemos uma aproximação histórica”, conta. Na antiguidade, a epilepsia era considerada uma “doença sagrada”, por isso Júlio César terá difundido que era epiléptico, uma vez que isso condizia melhor com a sua imagem pública, concluíram os dois investigadores num artigo em 2015 na revista Neurological Sciences, a que se seguiu o livro A Doença de Júlio César, que ainda não foi traduzido para português.

Alarico I, o rei dos visigodos que morreu de malária

Alarico I (370-410) ficou na história por ter atacado Roma a 24 de Agosto de 410 d.C. Depois, embarcou numa campanha em direcção ao sul para tentar chegar ao Norte de África, mas acabou por morrer. “Sofria de alguma doença que contraiu no Sul”, afirma Francesco Galassi. É que no Sul de Itália a malária estava muito difundida e pode ter sido essa a causa da sua morte. “Este estudo é um primeiro esforço para reexaminar a causa de morte do rei Alarico I”, lê-se no artigo científico que Francesco Galassi e outros colegas publicaram na revista European Journal of Internal Medicine.

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Quadro de O enterro de Alarico na cama de Busentinus Heinrich Leutemann

Através da obra Gética, que o historiador Jordanes escreveu no século VI, baseada por sua vez num trabalho do escritor romano Cassiodoro, Francesco Galassi e a sua equipa descartaram a hipótese de que Alarico tinha morrido de uma doença cardiovascular, devido à ausência de sintomas descritos naquelas fontes históricas. Alarico I estava aparentemente saudável durante o saque a Roma e só mostrou sinais de que estava doente na viagem de Campânia para a Calábria. “Como era migrante e vinha de uma zona onde não havia malária, não tinha imunidade a esta doença”, refere o médico. “Quando o túmulo for encontrado, podemos fazer testes moleculares [ADN]. Agora, as fontes sugerem que é a malária.”

Dante era ansioso e sonolento?

Quem diria que os poemas de Dante Alighieri (1265-1321) poderiam desvendar as suas próprias doenças. É o que acontece no canto I de Inferno: “Oh famoso sábio, acode ao perseguido!/Tremo no pulso e nas veias, transtornado!” As veias e os pulsos a tremer podem mostrar a ocorrência de medo e o que se designa por uma “reacção de stress agudo”, ou “reacção de lutar ou fugir”. Trata-se de uma resposta excessiva numa situação em que, em princípio, não há razão para se ter medo.

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Dante pintado por Sandro Botticelli

“Este é um exemplo do poder dos escritores para observarem e descreverem factos médicos”, comenta Francesco Galassi. Já o seu colega Giuseppe Plazzi, da Universidade de Bolonha (Itália), tinha referido antes que Dante sofria de narcolepsia, problema neurológico em que o doente se está sempre sonolento e está fortemente associada a ansiedade – uma conclusão que o investigador tirou a partir da leitura dos poemas da obra Vida Nova.

Gabriotto, personagem de um livro de Boccaccio

Até as personagens de um livro podem ser diagnosticadas por Francesco Galassi. Neste caso, a personagem é Gabriotto e aparece no livro Decamerão, escrito entre 1348 e 1353 por Boccaccio. O médico conseguiu traçar o quadro clínico através da descrição do escritor. “Boccaccio odiava medicina e odiava médicos. Mas era um observador muito bom”, diz Galassi. “No romance, descreve uma causa de morte de uma das personagens” – Gabriotto. E de que morreu? De um aneurisma na artéria aorta na zona do tórax (dilatação da artéria formando um saco) ou de um mixoma atrial (tumor benigno do coração). “Esta é uma história ficcional de um mundo real.”

Polichinelo, um símbolo da tuberculose

Vem de Nápoles, é preguiçoso, oportunista e uma personagem cómica do teatro italiano. “Este diagnóstico é diferente, porque é de uma personagem.” Para Francesco Galassi, Polichinelo, além de representar os sonhos e sofrimentos das pessoas, é também símbolo dos surtos de tuberculose no passado, segundo os seus estudos. Surge representado com as mãos e os pés grandes, sinal de acromegalia, síndrome também conhecida por gigantismo. E uma deformação na coluna vertebral e uma barriga proeminente, que podem ter sido provocadas pela tuberculose. “As figuras mitológicas têm patologias que podem reflectir como as doenças se espalhavam depressa no passado.”

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Polichinelo

A gota de Federico de Montefeltro

Este é o mais recente caso de Francesco Galassi, analisado com o seu colega Antonio Fornaciari, da Universidade de Pisa, em Itália. E já tem algumas conclusões. Todos conhecemos de alguma forma o duque Federico de Montefeltro (1422-1482) pela pintura de Piero della Francesca, o Duplo Retrato dos Duques de Urbino.

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Federico de Montefeltro pintado por Piero della Francesca

Já se sabia que o duque sofria de gota (artrite inflamatória devido ao excesso de ácido úrico no sangue, que inflama as articulações).

Agora, os cientistas já recolheram amostras dos ossos do duque e encontram também cartas que ele enviou para o seu médico. Nessas cartas, mencionava que tinha uma dor no pé direito. “Agora temos que investigar a nível genético [a amostras], assim como estudar as referências à gota neste período histórico.”

Madame Tussaud, um diagnóstico inclusivo

Marie Tussaud (1761-1850) era uma mulher de negócios no século XIX na Europa. E pode-se dizer que morreu de velha, aos 88 anos, em Abril de 1850. Sempre foi descrita como tendo boa saúde até ao fim dos seus dias e, pouco antes de morrer, vendia bilhetes do seu museu de cera em Londres e cumprimentava os visitantes.A descoberta de cartas dos seus filhos trouxe agora outra visão sobre a sua saúde.

O seu filho Francis escreveu ao seu pai François a dizer que Tussaud “está cada vez mais fraca e às vezes até muito doente e sofre de asma, que não lhe permite descansar durante a noite.” Além disso, também descreveu que as pernas da mãe estavam em más condições e os joanetes quase nem a deixavam andar. A equipa de Francesco Galassi considera que tinha uma doença cardiorrespiratória.

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Madame Tussaud Francis Tussaud

Contudo, noutras cartas, nomeadamente do seu neto John Theodore, dizia-se que estava muito “vivaça” e com uma “memória excelente” nos últimos anos de vida. As discrepâncias entre as cartas tornam, para já, esta análise inconclusiva. “A madame Tussaud é um bom exemplo da interpretação das fontes”, comenta Francesco Galassi. “Algumas cartas podem ser uma manipulação da sua família para promover uma certa imagem [como a carta do seu neto].”

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