A violência que prospera com a demissão do Estado
Episódios como os que se repetem a cada grande jogo, ou no campo do Canelas, vão servindo para matar a ideia de que o Estado, a lei, tem o exclusivo da violência.
A condescendência com que as autoridades, os clubes e boa parte dos adeptos têm reagido aos sucessivos episódios de violência no futebol gerou um vírus que, lenta mas inexoravelmente, se aceita com a normalidade das coisas rotineiras e indiferentes. Sabemos por intuição, por delitos provados ou por senso comum que as claques, todas as grandes claques, são organizações onde a intimidação, a agressão gratuita ou dolosa, a xenofobia e as ligações à extrema-direita são prácticas comuns. Sabemos que em torno das claques, de todas as claques, prospera uma camada de rufias que alimenta hordas de cobradores de dívidas ou de seguranças de discotecas obedientes à lógica das organizações de malfeitores. Sabemos tudo isso, mas desconhecemos uma única investigação profunda da autoridade tributária ou da Polícia Judiciária aos seus agentes, às suas práticas ou à sua ostentação de riqueza. É por isso que tudo se tornou rotineiro e indiferente, excepto quando as imagens de violência gratuita nos entram pelos olhos como aconteceu por estes dias.
A clubite irracional é o primeiro entrave à desminagem desse terreno pantanoso. Os do Sporting dizem que o mal está nos do Benfica e ambos se juntam para garantir que o extremo está no dos do FC Porto – e vice-versa. A verdade é que um registo isento dos incidentes dos últimos anos comprova que o mal está generalizado em todas as claques, o que torna a violência que protagonizam um problema colectivo – nacional. Querer desculpar, ou relativizar, os actos bárbaros dos “nossos” atirando pedras aos telhados dos rivais apenas serve para legitimar este caldo de cultura. Porque é disso que se trata: de um caldo de cultura obsceno e perigoso que germina perante a complacência geral.
Ser vilão de claque compensa. Eles aparecem na televisão, têm bons carros, acedem como lordes aos grandes jogos de futebol, a polícia protege-os sempre que vão vociferar impropérios a casa dos rivais, têm dinheiro para acompanhar os seus clubes ao Algarve ou à Rússia e ninguém quer saber nem como nem porquê. Organizações com tal vibração e imunidade têm o poder de se espraiar pelas ruas das cidades, de atrair os mais jovens, de reinar nos bairros problemáticos ou de se instalar no ambiente das escolas. Ser Superdragão ou No Name ou Juve Leo é sinal distintivo de poder, de relevância social, de prestígio. É o certificado que atesta a pertença a uma tribo unida num mundo deslaçado.
Num país com elevadas taxas de desemprego jovem, esse tribalismo é também uma forma de sobrevivência. Organizar viagens, distribuir bilhetes, comprar e vender merchandising, negociar intimidações ou oferecer segurança torna-se uma forma de vida que dispensa o incómodo dos impostos, dos horários, do esforço, do mérito ou do talento. Para se chegar lá basta a obediência a um grupo na escola ou no bairro e esperar que um dia as portas do núcleo duro oficial se abram. Depois, há que obedecer, ser mau como os piores, aprender a viver nas fronteiras da lei ou fora dela, emular a dureza, a esperteza e a ausência de escrúpulos. Um dia, talvez haja dinheiro a rodos para comprar carros caros ou viagens em hotéis de luxo. Como os chefes.
O mal não é de agora e é por isso que nos habituámos a ver sem sobressalto as imagens de um jogo de futebol no qual as televisões gastam horas a dar pormenores sobre os limites do campo da batalha e a disposição militar das forças da autoridade para a evitar. Achamos normal que um grupo de adeptos insulte e agrida com bolas de golfe os adversários (inimigos, na sua mundivisão), como este fim-de-semana aconteceu no Estádio da Luz e outras vezes aconteceu no Estádio do Dragão ou em Alvalade. Limitamo-nos a encolher os ombros e a largar um displicente “energúmenos” quando o restaurante do pai de um árbitro é vandalizado, quando uma estação de serviço é destruída ou quando cadeiras de um estádio são queimadas. Isso acontece apenas porque nunca houve um ministro da Administração Interna ou um procurador-geral que decidisse saber que íman poderoso consegue manter o grau de união das claques que serve de moto à sua repetida disponibilidade para a agressão ou para a destruição. Pode ser o clubismo cego, que leva os dirigentes, todos os dirigentes, a tolerar a sua existência, e por vezes até a incentivá-la; mas o seu combustível essencial só pode ser o pacto de segredo que a violência organizada, a corrupção e os hábitos de gangue exigem.
Agora que o escândalo no Canelas 2010, dominado por nomes grados da claque portista, rebentou, talvez valha a pena recordar que as práticas deste clube se repetem há anos sem que nem as autoridades do futebol, nem as da polícia, nem as da procuradoria tenham reagido por aí além. Um jogador que parte o nariz a um árbitro à vista de centenas de pessoas é constituído arguido e expulso do clube e vai tornar-se por uns dias o exemplo acabado de que a decência existe e o Estado de Direito funciona. Ninguém vai querer saber se o gesto de Marco Gonçalves é um acto isolado ou se é apenas a ponta do icebergue de um mal muito maior e muito mais perigoso. Ninguém quer ver que sua joelhada é apenas um sintoma de uma forma de estar e de viver onde a lei não cabe e os valores inexistem. Como Marco Gonçalves disse, “esse senhor [o presidente do Canelas] que falou que tenho que ser castigado é o mesmo que me disse a mim que se tiver que f… um, dois ou três é para f…”.
Talvez seja assim hora de exigir que se saiba como e por que é que este ano foram agredidos 43 árbitros. É porventura momento de saber que ligações há entre as claques e os actos de violência e intimidação associados a cobrança de dívidas, aos corpos de segurança clandestinos, às redes de protecção de casas nocturnas que há dez anos ameaçaram transformar o Porto numa cidade sul-americana, ou a brigadas especializadas em fazer ajustes de contas pessoais ou entre clãs. É urgente perceber que mina de ouro alimenta as claques nos seus hábitos caros de viajar ou de exibir sinais exteriores de riqueza.
Como qualquer cidadão num estado de direito, os dirigentes das claques têm direito à presunção de inocência. Mas ficaremos todos mais tranquilos quando e se tivermos a certeza de que esse foco de irradiação de medo está de facto dentro da lei – uma contradição à partida. Tem pois a palavra as senhoras procuradora-geral e a ministra da Administração Interna. Há muito que passámos a linha da indignação circunstancial: episódios como os que se repetem a cada grande jogo, ou no campo do Canelas, vão servindo para matar a ideia de que o Estado, a lei, tem o exclusivo da violência. Haverá coragem para pôr tudo em pratos limpos, ou estamos condenados a assistir ao alastramento da vilania perante o silêncio cobarde do Estado e as palavras de circunstância dos agentes de futebol?