O sal da perda

Uma poesia de extraordinária atenção às tonalidades de tempos diferentes, aos lugares e às práticas humanas. Mas uma poesia também atenta à especificidade das suas técnicas e aos modos da sua feitura: Inês Lourenço.

Foto
Inês Lourenço: uma poesia de marca autoral forte

O Jogo das Comparações surge um ano depois de uma antologia da poesia de Inês Lourenço sagazmente organizada pelo poeta José Manuel Teixeira da Silva (já antes saíra a rigorosa e concisa antologia de Manuel se Freitas: Câmara Escura, Língua Morta, 2012). O Segundo Olhar (Companhia das Ilhas, 2015) assinalava 35 anos passados sobre o primeiro livro da autora, Cicatriz 100% (Editora das Mulheres, 1980) e, na sua estrutura dinâmica e comunicante, dava ampla conta de uma poesia de marca autoral forte, frisando nela importantes linhas de força. A rigorosa filtragem da matéria familiar, com cambiantes dignos de relevo, dedicados ao terreno sempre resvaladiço da infância; mais do que uma geografia sentimental, um memorando aplicado aos sentidos do sentimento, a fazer do rigor uma camada que salva o verso da sobre-exposição capaz de o pulverizar; a presença animal como biologia e ética autónoma, e não apenas enquanto complemento da humanidade; o largo leque das artes que, nas suas varas, desdobra a aventura/desventura do humano; a fímbria, ora risível, ora trágica, que circunda o poliedro artístico e vai fornecendo ocasião para a sátira, a elegia, ou a lírica mais introspectiva; a importância quase ritualística (um “quase” importante, numa poesia que despreza a pompa e sobrevive dignamente sem hieratismos) dos encontros e dos espaços em que eles decorrem.

Neste novo livro, a poesia de Inês Lourenço volta a posicionar-se sob a órbita de uma exigência esboçada logo numa das suas epígrafes iniciais. As palavras de João Cabral de Melo Neto recusam, de forma inequívoca, a facilidade na escrita; adquirem especial relevo utilizadas por uma poeta para quem são nucleares o rigor oficinal, o labor da composição, o cuidado prestado aos suportes do som, do léxico e do ritmo. Não por acaso, o poema que abre este livro formula um apelo claro a essa dimensão do fazer poético: “Acolhe o ritmo/das palavras como um artesão anónimo/ inventa a própria ferramenta/ a ferir os dedos/ na fugacidade dos anos// E não incandesças o ludíbrio/ do amor.” (p.11) Uma verdadeira lição na “artesania” de que falava um dos editores de Inês Lourenço, Vitor Silva Tavares.

Aqui aplicada à poesia enquanto construção, com as suas técnicas, a sua gramática e com a particularidade das suas práticas. A invenção de um utensílio é qualquer coisa que diz muito acerca desta poesia, que reflecte agudamente sobre a sua própria condição construtiva; os dedos feridos fornecem indicações centrais para tentar entender os poemas de Inês Lourenço, que atribuem grande importância à rudeza do mundo. O uso de um advérbio como “feridamente” (p.19) reconduz os sentidos desta poesia para a necessidade de confrontar uma das suas afirmações de mais inequívoca secura: “nenhum apodrecimento é suave” (Coisas Que Nunca, & etc, 2010).

Uma paráfrase possível para um verso como “os perdedores são sempre o sal da Terra” (p.21) poderia encontrar-se na fórmula “o sal da perda”. A memória bíblica sintetiza uma história de abdicação e despedida. A função perdedora define o curso da existência, tal como é aqui entendida, sem demasias expressivas, nem incúria de construção — “vamos contando o decrescer/dos dias, nesta vez que nos cederam/ sem garantias de regresso” (p.23) —, mas ciente de um destino que se espreita como por um óculo estreito: longe e afunilado. A dúvida é metódica, e é de norma o comedimento com que se avança na exposição e na auto-análise. O desprendimento, contudo, nunca se aproxima da displicência, como não é frieza estética, ou outra, a forma rigorosíssima com que se é, nestes versos, factual. Esta factualidade, por seu turno, não abre caminho à secura de uma tonalidade apagadamente documental. Pelo contrário, a proximidade entre estas palavras e a dureza dos factos apenas lhe fornece uma carapaça, uma cota que cobre o corpo para a liça. As lutas, nestes versos, mal são metáfora, pois constituem na prática, uma literalidade mediante o que aqui se afirma. Até no âmbito ardente de uma revolução de componentes em que a comunicação se estilhaça — “Um poema/ é sempre uma pergunta/ sem resposta.” (p.43) —, os poemas de Inês Lourenço constroem, cuidadosamente, as suas realidades.

A sua realidade é feita de materiais que se revisitam, ou de locais a que se retorna. Materiais como aquele que cobre o chão — “as aprendizas de modista que começavam/ por apanhar alfinetes do chão no atelier, entregar figurinos/ às freguesas, encerar os soalhos da mestra” (p.62). O soalho parece congregar experiências visuais, tácteis e até olfactivas — “A minha infância/ cheira a soalho esfregado a piaçaba/ aos chocolates do meu pai aos Domingos/ à camisa de noite de flanela/ da minha mãe”. São versos de um poema chamado Rua de Camões (Cicatriz 100%), que recupera, aplicada mas nada obviamente, uma electiva topografia portuense. O soalho sobrevive como base e como alvo — “os pés eram filiais afluentes/ das rugas do soalho,/ dos bordos da madeira” (Retinografias, Editora das Mulheres, 1986). Não se trata de um apego que debilite, mas de uma pertença definidora e interrogada pela memória e a especulação mais fiscalizada — “Muitas vezes, por outras casas/ e noutros países sonhava/ com o soalho antigo” (Um Quarto com Cidades ao Fundo: poesia reunida — 1980-2000, Quasi, 2000). Os cafés são outro dos vectores desta inclinação topográfica — “Talvez/ a nossa pequena pátria esteja repartida/ numa cantata de Bach, num par/ de lençóis lavados, num café em/ chávena escaldada” (p.45). O estado dubitativo deste poema, a aproximação pelo lado menos evidente, paralelizam o de um poema anterior: “Não sei, meu amigo, o que/ irradiava mais calor, se/ a chávena escaldada, se/ o cimbalino fervente, se/ as conversas sobre livros de poesia/ que nesse tempo ainda/ acreditávamos ser a maior/ razão.” (Relâmpago, n.º28, Abril de 2011)

O embate com o passado mais ou menos recente, mas também com a infância, talvez seja, sobretudo, uma forma de confrontar o próprio tempo e os efeitos subjectivos da sua passagem. O esquema anafórico, que carrega a nota pretérita, cria uma pauta que afirma e reitera a acção do tempo sobre o sujeito, fazendo ecoar a dolência sóbria de uma cessação — “Desaprendeste/nomes e qualidades de quase tudo./(…)/ Esqueceste/ o nome das cores. Só sabes que descendem o dia ou da noite.” (p.31) Encarar o passado é, para esta poesia, semelhante a olhar de frente uma outra espécie animal. Em ambos os casos, a biologia é distinta. Uma galinha que se destina a ser morta ensina uma rude lição de violência ao sujeito do poema —“Não era bem galinha, mas/ um bicho desses ainda menor.” (p.29), em que toda a identificação é estranheza e rispidez; outras espécimes se agitam, cada qual na sua peculiaridade — “toda uma noite de labuta/ de qualquer pequeno insecto” (p.31). A redução na escala não acarreta qualquer engrandecimento humano. Pelo contrário, a humanidade abraça constantemente a sua condição relutantemente animal. Pequena, de breve duração. As “comparações” do título não serão, talvez, dos homens com os animais. Tratar-se-á, sim, de analogias como as que estão presentes nas técnicas da escrita; assim como no posicionamento em face de tempos passados, que se comparam sem saudosismos nem ânsias desassisadas do porvir.

Sugerir correcção
Comentar