Os Açores, entre os limites da ciência e o início da imaginação
A última da trilogia de exposições A Imagem Paradoxal – Francisco Afonso Chaves chega ao Açores, o lugar onde a fotografia deste naturalista se expressa em pleno. No Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, continua a descoberta desta obra pioneira.
Há quem diga no arquipélago que a Azorina vidalii, um pequeno arbusto de folhas carnudas e flores em forma de sininho que começam a brotar agora em Abril, é o ser vivo mais açoriano dos Açores. Isto porque, geneticamente, se diferencia de todos os outros “parentes” próximos, não existe em qualquer outra parte do mundo e é constituído por espécie e género endémico, ou seja, exclusivíssimo dos Açores. No final do percurso da última exposição da trilogia A Imagem Paradoxal – Francisco Afonso Chaves, no meio de móveis apinhados de velhos herbários e vitrinas com cobras conservadas em grandes frascos de éter, há uma mesa sobre a qual repousa uma vidália ressequida. Foi colhida em 1897 na ilha das Flores precisamente pelo naturalista Francisco Afonso Chaves e funciona como citação perfeita quer da açorianidade do lugar (núcleo de S. André do Museu Carlos Machado, Ponta Delgada), quer da especificidade e características extraordinárias da obra fotográfica de um autor que só agora, passados mais de 90 sobre a sua morte, vem sendo revelado.
Claro que, ao contrário da Azorina vidalii, nem os fotógrafos nem a fotografia são um exclusivo dos Açores. Mas aquilo que o trabalho dos comissários Victor dos Reis e Emília Tavares tem revelado acerca da obra de Afonso Chaves desde a primeira exposição no Museu do Chiado (Outubro de 2016) é uma simbiose entre arte e ciência (no mínimo) muito peculiar, extraordinariamente criativa e, seguramente, pioneira em Portugal. Isto para além de colocar na rota da história da fotografia portuguesa um nome que, até hoje, “nem sequer a uma nota de rodapé teve direito”.
Para a exposição no Museu Carlos Machado, em São Miguel, nos Açores, onde Afonso Chaves passou quase toda a vida (ou para onde voltou sempre, já que andou em permanente viagem), foram seguidos dois eixos programáticos em torno de mais de 40 anos de trabalho, que ora revelam novas facetas da vasta produção fotográfica (na grande maioria em formato estereoscópico) daquele que foi um dos mais destacados e multidisciplinares naturalistas do final do século XIX (abordou diferentes áreas das ciências naturais, em especial a sismologia, a vulcanologia e a meteorologia), ora aprofundam outros caminhos já explorados nas duas exposições anteriores (a segunda, mais voltada para as fotografias com sujeitos relacionados com ciência, ainda pode ser visitada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa). “Não quisemos fazer uma exposição itinerante, mas um conjunto de exposições que pudessem formar um puzzle acerca da complexidade e, sobretudo, do brilho intelectual e estético da obra fotográfica de Francisco Afonso Chaves”, afirmou o comissário Victor dos Reis, professor e presidente da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, durante uma visita guiada que o P2 acompanhou.
No entanto, como seria de esperar, esta é, para além da maior e mais diversificada, a “mais açoriana” das exposições da trilogia A Imagem Paradoxal, resultado de uma investigação iniciada há sete anos por Victor dos Reis, à qual se juntou Emília Tavares, conservadora em fotografia e novos media do Museu do Chiado. Em todos os núcleos apresentados há sempre qualquer coisa do arquipélago, quer se trate da flânerie em torno da paisagem ou da intimidade da vida familiar, uma dimensão que ainda não tinha sido mostrada e que segue o mesmo rasgo criativo, a mesma sensibilidade estética presente noutras temáticas captadas por Afonso Chaves.
Logo a abrir a exposição, no núcleo de Santa Bárbara, a temática Açoreana coloca-nos perante dimensões aparentemente opostas, mas reveladoras da enorme dedicação e curiosidade pela terra que se tornou a sua (nasceu em Lisboa em 1857): por um lado, a preocupação em registar a ruralidade, os usos, costumes e tradições das ilhas; por outro, o cosmopolitismo na decisão de captar os acontecimentos sociais e políticos de forma narrativa e dinâmica, incorporando a atitude de um repórter. “Quando se esperaria que Afonso Chaves só fotografasse paisagem e mar, a verdade é que ele percebe que a fotografia é um testemunho da história dos acontecimentos e que será um instrumento fundamental para a imprensa ilustrada que começa a despontar no início do século XX”, afirma Emília Tavares.
Cartão-de-visita da paisagem açoriana
Em Açoreana temos por um lado fotografias de romarias, desfiles carnavalescos e mulheres a lavar e a secar roupa, espalhando as peças pelo chão. Por outro, a visita régia (D. Carlos e D. Amélia, em 1901) ou a visita de Estado do príncipe Alberto I do Mónaco, em 1904, onde Francisco Afonso Chaves se mistura com a multidão, à procura da proximidade, do instante mais revelador, da intensidade do momento.
Em relação a esta abordagem dos acontecimentos seguindo os modelos da reportagem, Victor dos Reis deixa um alerta : “Quando olhamos para as fotografias da visita régia e da visita de Alberto I do Mónaco, dá a sensação de que estamos perante um normal repórter fotográfico, alguém distanciado do acontecimento, que está a ver de fora, mas, na verdade, Afonso Chaves faz parte de um pequeno conjunto de pessoas que tem o direito a estar ao lado quer de Alberto quer do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia. Ele era amigo pessoal quer dum quer doutros. Mas também é notório que tem capacidade para se misturar na multidão, de encenar um olhar neutro, naquilo que é um acto totalmente visual, fotográfico e, diria também, totalmente artístico.”
E no meio destes dois universos (entre o "repórter" e o "documentalista visual etnográfico", ainda na secção Açoreana), uma descoberta que põe a impressão digital de Afonso Chaves na imagética primordial dos Açores: provas fotográficas monoscópicas de paisagem açoriana que serviram de matriz para a produção de postais coloridos sobre o arquipélago. O achado destas imagens surgiu há pouco entre o espólio do escritor, poeta, dramaturgo e etnólogo açoriano Armando Corte Rodrigues e vem dar corpo a uma tese que Victor dos Reis tinha formulado e que põe Afonso Chaves na origem de parte da iconografia fotográfica mais relevante daquelas ilhas. Para Emília Tavares, “estas imagens tronaram-se um cartão-de-visita da paisagem açoriana” e, de certa forma, terão contribuído para “construir um inventário patrimonial natural do arquipélago”. Victor dos Reis: “Estes documentos vieram demonstrar que estávamos corretos numa hipótese, a ideia de que Afonso Chaves é um dos autores que consagra alguns dos pontos de vista que temos como mais icónicos e que tendemos a reproduzir assim que chegamos aos Açores.”
Ainda na mesma sala, um pequeno conjunto de pintura do espólio do Museu Carlos Machado ajuda a contextualizar o gosto pictórico da época e assinala a decisão de Afonso Chaves de passar a incorporar outras colecções naquele museu, para além das relacionadas com ciência e história natural. Entre as fotografias de família ou de imagens onde o próprio aparece (não se sabe se em auto-retrato ou em autoria partilhada), destaque para uma fotografia de grupo junto ao mausoléu do escritor Antero de Quental, de quem Afonso Chaves foi amigo e cujo ensaio A Filosofia da Natureza dos Naturalistas (1886) terá tido, segundo Emília Tavares, “grande influência” neste fotógrafo renitente, e terá provocado entre os dois discussões “sobre quais eram os limites da ciência e o início da imaginação” ou “os limites da razão e o início da poesia”. “São estes os paradoxos em que se move Francisco Afonso Chaves e é também por isso que esta exposição se chama A Imagem Paradoxal.”
Em modo camera semiobscura, num espaço que funciona como pedra circular da exposição, ergue-se, misteriosa, uma estrutura octogonal a imitar os kaiserpanorama, aparelhos à volta das quais (sobretudo no final do século XIX) se reunia clientela ávida por “viajar” pelo mundo sem sair do assento, cortesia da ilusão tridimensional da fotografia estereoscópica. É nesta sala que está uma das mais singulares imagens de Afonso Chaves, aquela em que mostra uma neta no naturalista em cima de uma cadeira de verga a espreitar por um visor portátil de panoramas estereoscópicos, aparelho esse por onde é possível vermos agora o original em vidro, num exercício de metafotografia, graças ao empréstimo desta peça centenária por parte dos descendentes do fotógrafo. E é também aqui, numa imensa mesa de luz, que é possível mergulhar estereoscopicamente nas mais inusitadas, experimentais (cor, sobreposição), vanguardistas e formalmente eficazes fotografias de Francisco Afonso Chaves que, apesar ter deixado uma vasta obra epistolar e diarística, muito raramente se referiu à fotografia, facto misterioso atendendo à quantidade de imagens da sua autoria (cerca de sete mil negativos) e, sobretudo, ao apuro sensorial que conseguiu colocar em quase tudo o que registou desta forma.
Arrepios na espinha
Numa muito procurada passagem escrita mais ligada à estética, perante a imponência das montanhas da Cidade do Cabo ao nascer do sol na manhã de 16 de Junho de 1906, o naturalista confessa sentir “arrepios na espinha” perante aqueles “panoramas”, os mesmos calafrios que o trespassavam perante as lagoas das Sete Cidades ou defronte de tudo o que fosse “grandioso e belo”. (“O meu sentido estético, está localizado na espinha dorsal.”)
A par desta sensibilidade estética, revela uma curiosidade insaciável. Ainda que fugazes, as experiências de Afonso Chaves com a fotografia a cores, por volta de 1905, demonstram bem o quanto estava atento às novidades técnicas internacionais da época, já que o processo de autochrome dos irmãos Lumière, patenteado em 1903, só viria a ser comercializado em 1907. Este carácter inovador é bem vincado pelos comissários, ao escolherem para o cartaz da exposição dos Açores uma imagem onde o naturalista faz “uma experiência cromática”.
Agora que já se conhece boa parte da obra fotográfica de Afonso Chaves, é impossível não a relacionar com o estímulo criativo que a viagem lhe proporciona. No núcleo O Fotógrafo Errante, aquele que mais se liga com as duas exposições anteriores, vemos a impressionante colecção de destinos de um homem que tanto se interessa por fotografar a balbúrdia de trânsito e de pessoas num cruzamento de Londres, como pela mais solitária figura a deambular num beco de Zanzibar — ou seja, “só” dentro da errância da viagem, todo um mundo de fotografia, dos grandes panoramas de paisagem (no caso dos Açores, à procura de forjar uma identidade através do património natural) às experiências meteorológicas e ao mar, talvez o tema que Afonso Chaves mais intensamente fotografou e com uma perspectiva pioneira em Portugal, a partir do lado de quem chega (ou parte), do lado de fora, de dentro do barco. “Para nós hoje é muito fácil viajar, mas naquela época não era tanto assim. Por outro lado, a viagem de barco era muito diferente, deixa uma marca de mundivisão, uma visão larga do mundo muito presente na abordagem fotográfica de Francisco Afonso Chaves. Este aspecto é muito relevante na obra dele, já que não há, que se conheça, na história da fotografia portuguesa tantas fotografias captadas desta forma a partir de um barco, à distância”, afirma Victor dos Reis. Por seu lado, Emília Tavares nota que “as imagens relacionadas com o mar do século XIX são, em geral, muito contemplativas e influenciadas pela pintura e não têm o repto estético das fotografias de Francisco Afonso Chaves".
Antes de se chegar à amostra de Azorina vidalii com que termina a exposição, já no Convento de Santo André, recentemente reaberto com a exposição permanente de história natural do Museu Carlos Machado, é possível fazer o confronto entre espécimes reais e as fotografias de Afonso Chaves em que estes foram sujeitos. “Não fazia muito sentido não incluirmos esta colecção na exposição. Não queríamos que A Imagem Paradoxal coincidisse apenas na terra e no museu que ele ajudou a fundar, mas que tivesse uma relação mais directa com este espaço e a colecção”, explica Victor dos Reis.
E à terceira exposição, o que é que ainda surpreende os comissários? Victor dos Reis: “Apesar de já me ter habituado à dimensão do espólio, o facto de ainda aparecerem coisas novas reforça a estranheza de alguém que nunca se assume como fotógrafo, mas que ao mesmo tempo fotografa tanto. Continuam a aparecer documentos e imagens completamente inesperadas, como agora quando pedimos um visor estereoscópico à família e vinha acompanhado com mais negativos em vidro que não sabíamos que existiam. A sua dimensão de fotógrafo está longe de ser apenas complementar. Ainda que ele nunca o tenha assumido, é certo que a fotografia teve na sua vida uma dimensão muito grande. Creio que ele pensa muito no resultado, no efeito que vai provocar, mesmo nas fotografias que tira no seio da família.” Emília Tavares: “Uma das coisas que mais surpreende é a dimensão desta obra fotográfica, e quanto mais se mergulha, quer do ponto de vista fotográfico, quer do ponto de vista documental, encontram-se muitas relações entre a parte mais científica e a cultura visual da época.”
Perante as descobertas que foram sendo feitas recentemente nos Açores e em Lisboa durante a produção desta trilogia, pode dizer-se que o trabalho esteja completo? Victor dos Reis duvida e diz que “ainda há muitas peças por encaixar”, não só a nível fotográfico, mas também sobre o percurso pessoal Afonso Chaves, alguém que, para além de frequentar a alta política, se relacionou (e se correspondeu) com alguns dos maiores vultos científicos do seu tempo.
Voltando ao convento de Santo André, na sala de exposições temporárias, resgata-se "o fotógrafo naturalista" e mostra-se o lado mais cientista, utilitário, referencial e arquivístico das suas imagens, lembrando também que, apesar da vénia que agora lhe é feita, Francisco Afonso Chaves, pelo (muito) que deixou escrito, nunca se intitulou fotógrafo. Coisa rara e original, como a vidália dos Açores.