No tripé de Afonso Chaves, tanto cabia o teodolito como a câmara fotográfica
A obra fotográfica do naturalista açoriano Francisco Afonso Chaves combina a curiosidade do cientista e a sensibilidade de um artista. Na segunda de uma trilogia de exposições sobre um legado até agora desconhecido, o Museu de História Natural, em Lisboa, mostra uma rara fusão entre arte e ciência.
O teodolito foi mais do que um companheiro de estrada para os trabalhos de campo de Francisco Afonso Chaves (1857-1926). Este instrumento de precisão óptico tornou-se uma presença regular nas fotografias captadas pelo naturalista açoriano, como se fosse um personagem em nome próprio, que não só era utilizado para medir a natureza, mas também para dizer que a ciência se podia fundir com ela. O grande e pesado tripé de madeira que tantas vezes serviu para sustentar aquele aparelho (auxiliar de saberes tão diversos como a geodesia, a navegação, a construção civil, a agricultura ou a meteorologia) também serviu amiúde para segurar uma câmara fotográfica. O que quer dizer que ao longo de quase três décadas, na viragem do século XIX para o XX, Afonso Chaves tanto procurou a exactidão da ciência, como a estética e a conceptualização da fotografia.
Não é de estranhar, por isso, que um enorme tripé armado com um teodolito seja uma presença marcante na segunda parte de A Imagem Paradoxal, a exposição consagrada à obra fotográfica pioneira de Francisco Afonso Chaves, que pode ser vista a partir de hoje no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUNHAC), em Lisboa, até 28 de Maio. Depois da exposição inaugural no Museu do Chiado (concentrada na revelação das múltiplas facetas fotográficas de um autor praticamente desconhecido em Portugal e que pode ainda ser vista até 26 de Fevereiro), neste segundo tomo (o terceiro é nos Açores a partir de 23 de Março), a atenção dos comissários Victor dos Reis e Emília Tavares centrou-se nas diferentes valências do seu trabalho como naturalista, particularmente no impulso decisivo que deu ao desenvolvimento da meteorologia e naquela que é considerada uma “rara” interacção fusão entre arte e ciência à época em Portugal.
Como se a presença (e a imponência) do tripé científico-fotográfico na sala não bastasse, a primeira série de imagens apresentadas (Ilha de S. Jorge) ajuda a afastar quaisquer dúvidas sobre as virtudes da ligação entre a “curiosidade do cientista” e “a sensibilidade do fotógrafo” tão presentes em Afonso Chaves. Na primeira imagem, surgem os três pés de madeira altivos, registados de baixo para cima, ainda sem nada, nem ninguém (apenas paisagem açoriana, com uma igreja ao fundo). Na imagem seguinte, aparece um homem. E na terceira fotografia, já são dois homens.
As fotografias de Afonso Chaves costumam estar bem legendadas (numeração, localização, data) e é comum serem complementadas pelos dados científicos obtidos nos equipamentos. Mas depois de cumprida essa tarefa que procura a precisão, o olhar do cientista parece deixar-se guiar pelas emoções. Na mesma série de São Jorge, surgem fotografias como a que mostra três crianças a brincar com uma prancha de madeira na água da Lagoa Pequena da Caldeira de Santo Cristo. Ou a que mostra a textura do cascalho a desaparecer na planura da água da mesma Lagoa Pequena (sempre com uma igreja ao fundo). E aqui não há só a virtude da composição e da “oportunidade fotográfica”, mas o sentido narrativo e a vontade de afirmar o trabalho científico como um campo poroso e receptivo à visita da criatividade, do encanto e do deslumbramento.
Victor dos Reis, que com Emília Tavares guiou uma visita para o PÚBLICO, fala com entusiasmo deste conjunto porque é — entre outros de um espólio de cerca de sete mil imagens quase só registadas no processo de estereoscopia — representativo da tese de que Francisco Afonso Chaves conseguiu erguer uma obra fotográfica com “enorme valor estético” e que ultrapassa a sua natureza meramente técnica ou puramente instrumental
documental. “[Na Lagoa Pequena, Afonso Chaves] começa com um tipo de fotografia de puro registo, que será completada em diário, onde surgem medições, horas... mas, depois disso, começa logo a divagar. Nesta série, são mais as fotografias de paisagem do que as que se podem considerar como instrumentos de trabalho.”
Uma caixinha de surpresas
Apesar do aturado trabalho de investigação que ao longo dos últimos anos Victor dos Reis (presidente da Faculdade de Belas Artes de Lisboa) tem dedicado ao naturalista-fotógrafo açoriano, a extensão e alcance da sua obra (na fotografia e na ciência) ainda está por balizar. E a prova disso surgiu nos meses que antecederam a produção desta exposição, quando em locais diferentes apareceram mais documentos e fotografias da sua autoria. Só no Observatório Astronómico de Lisboa foram descobertos 17 documentos (entre cartas, desenhos, relatórios e esquemas) e 21 fotografias (quase todas positivos), das quais quatro são inéditas.
E a cereja no topo do bolo: três pequenas caixas de madeira para o envio por correio de fotografias estereoscópicas em vidro, esquema que Victor dos Reis desconhecia em Afonso Chaves e que o leva a acreditar que terá sido usado para mandar imagens para outros dos seus correspondentes nacionais e internacionais, que se contam às centenas, entre os quais reputados cientistas e futuros prémios Nobel. Todos estes documentos estão expostos no MUNHAC, onde foram incluídos vários instrumentos de medição, balões meteorológicos e espécimes de animais da colecção do Museu da rua da Escola Politécnica, que dialogam com muito do conteúdo das fotografias de Afonso Chaves. Para Emília Tavares, esta descoberta é demonstrativa dos tentáculos que o trabalho do naturalista açoriano foi ganhando: “Há aqui um lado rizomático na obra dele que é surpreendente. Não é muito comum alguém ser tão abrangente como ele foi.”
A exposição no MUNHAC está organizada segundo três grandes grupos. No primeiro, “Observar”, revelam-se os instrumentos e as infra-estruturas que à época serviam para a observação da natureza e dos fenómenos atmosféricos. Aparecem vários postos meteorológicos nos Açores, que o próprio ajudou a fundar, e os que visitou no estrangeiro. É aqui que aparelhos como o teodolito assumem uma persona e uma “pose” dialogante com a imensa paisagem açoriana. Não sendo um retratista regular, Afonso Chaves também experimentou este género, sobretudo com os cientistas seus pares vindos de todo mundo. No núcleo “Registar, Fotografar e Mapear” vemos as várias utilizações que deu à fotografia estereoscópica, um suporte ideal para um visionamento “imersivo e demonstrativo” do seu trabalho de campo. Neste núcleo foram incluídas aquelas que são talvez as imagens mais divulgadas de Afonso Chaves, que mostram vários momentos da caça da baleia. Em 1890, a revista Journal de l’Anatomie et de la Physiologie... publicou um artigo assinado por G. Pouchet e Francisco Afonso Chaves, no qual se descrevem estas imagens “como as primeiras fotografias científicas do cachalote”, científicas porque dão a escala através de um homem em cima do animal morto (mais de dez anos depois, a Illustração Portugueza reproduziria parte dessas imagens). É neste núcleo que está uma das séries mais intrigantes de toda exposição, a que mostra a cabeça de um peixe “enfeitada” com o que parecem ser barbatanas, aquilo que Victor dos Reis classificou como “um exercício de ironia sobre a categoria natureza-morta”.
Por último, o núcleo “Arquivar” revela o prazer da viagem e o gozo em registar a maneira como os museus de história natural organizavam e apresentavam em público as suas colecções. E até aqui, num mundo aparentemente enfadonho de salas cravadas de espécimes inertes, a sensibilidade fotográfica de Afonso Chaves vem ao de cima. Como quando aproxima a câmara aos frascos de éter, abstraindo o seu conteúdo cheio de seres difíceis de identificar. Ou quando “tropeça” numa misteriosa estátua amputada de braços e pernas, “perdida” num jardim de Londres, uma imagem capaz de nos causar estranheza e repulsa.
Seja onde for, seja sobre o que for, as fotografias de Afonso Chaves parecem sempre capazes de nos provocar. E, a avaliar pelo muito de extra-científico desta exposição, não é de excluir que tenha sido essa a sua intenção.