Entremos num museu em Luanda
O Museu de História Natural e a palanca negra gigante servem ao artista Kiluanji Kia Henda para reflectir sobre o uso da história. Nós, os espectadores, acabamos caçados entre ficções coloniais e pós-coloniais.
Que espectadores somos nós no Museu Nacional de História Natural, em Luanda? Reaberto há poucos meses depois de obras de reabilitação para comemorar o último aniversário da independência de Angola, as imagens mais recentes do seu interior chegam-nos através de uma exposição do artista plástico angolano Kiluanji Kia Henda, inaugurada no final da semana passada na Galeria Filomena Soares, em Lisboa. Num projecto intitulado In The Days of a Dark Safari, Kia Henda, que aos 37 anos tem já uma significativa carreira internacional, mostra-nos 14 fotografias realizadas na secção de zoologia do museu, separadas em duas séries, e uma curta-metragem de 17 minutos, Havemos de Voltar, filmada em vários locais de Luanda, da Associação 25 de Abril a um musseque, passando pelos murais revolucionários do Hospital Militar de Angola.
Artifício é a palavra-chave da exposição. A primeira estranheza é estarmos no interior de um museu em Luanda, uma instituição cultural que simboliza por excelência a vida quotidiana de uma cidade normal. Mas a capital de Angola tornou-se na última década símbolo de uma crise urbana e política permanente.
O Museu Nacional de História Natural, que é uma herança colonial, continua a ser o maior museu público de Luanda, dizem as notícias de reabertura do final do ano passado. Nos Dias de um Safari Sombrio fala dos safaris científicos que deram origem à secção de zoologia do museu, onde o grande destaque vai para a palanca negra gigante, que se pensou ter-se extinguido durante a guerra civil. A palanca negra gigante é um símbolo de Angola, usado quer pela selecção nacional de futebol, quer pela companhia aérea de bandeira.
A palanca do Museu Nacional de História Natural é um animal empalhado, que representa, ouve-se no filme, “um desejo doentio de manter vivo o passado”. A exposição lança-nos “numa viagem múltipla”, onde temos constantemente dúvidas sobre o nosso lugar como observador: “Estamos em África e na Europa, no século XIX e no século XXI, dentro e fora da vitrina. As falsidades colidem umas com as outras”, escreve o artista num texto que acompanha a exposição. Tudo é montagem, da própria história, colonial e angolana, ao processo artístico de Kiluanji Kia Henda.
Numa conversa na galeria, o artista, a propósito da personagem principal da curta-metragem, uma palanca que anseia regressar à selva, explica que o animal, a que a cantora e compositora Aline Frazão dá voz, “está sempre num lugar fabricado”. Esse lugar artificial pode ser a África que deve ser domada, uma construção do evolucionismo colonial, que opõe civilização e barbárie, materializada no livro O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, e por um colonizador que se mantém à distância. Mas pode igualmente ser uma construção do populismo pós-colonial, que defende a possibilidade de regresso a um paraíso africano perdido destruído pelos colonizadores. Esse paraíso selvagem é evocado no título da curta-metragem, que cita o poema Havemos de Voltar, de Agostinho Neto, o primeiro Presidente de Angola e herói da luta pela independência.
Mas voltemos às fotografias de Kiluanji Kia Henda, algumas em grande formato, que mostram uma natureza pintada em trompe l’oeil no Museu de História Natural. Os fundos “naturalistas” que enquadram palancas, macacos, leopardos, pelicanos, veados ou lagartos foram pintados por Albano Neves e Sousa, que realizou vários murais para edifícios públicos durante a época colonial, sendo o mais famoso o do Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, uma imagem vista e revista a todas as chegadas a Luanda. Se Neves e Sousa é entendido por alguns como um pintor oficial do regime colonial com um olhar marcadamente etnográfico – como disse António Ole numa entrevista ao PÚBLICO –, Kiluanji Kia Henda afirma-o como “um pintor angolano”, mesmo que Neves e Sousa tenha saído de Luanda em 1975, ano da independência de Angola, e morrido no Brasil em 1995.
É neste território ambíguo que somos constantemente colocados como espectadores e que Kiluanji Kia Henda gosta de se mover. A sua palanca negra está num safari sombrio e aparece coberta com um pano preto, o mesmo destino que conhecem as imagens religiosas durante a quaresma. O projecto In The Days of a Dark Safari, diz o artista, começou durante uma das suas muitas visitas ao museu, pelo qual tem um fascínio desde criança, em que os animais lhe surgiram tapados por causa das obras.
Animais e selva de luto, protegidos do olhar fotográfico, numa atitude “anti-catalogação” que o artista gostou de encontrar acidentalmente no museu. Mas o “espectador activo” acaba sempre por se transformar num “animal caçado”, defende o artista no texto que acompanha a exposição (também assinado por Lucas Parente).
Paraíso e inferno
Além dos panos negros, Kiluanji Kia Henda levou para o Museu de História Natural um performer, presente na série de fotos The Last Journey of the Dictator Mussunda N’Zombo Before the Great Extinction/A Última Viagem do Ditador Mussunda N’Zombo Antes da Grande Extinção. É uma encarnação de Mobutu Sese Seko, arquétipo do ditador africano, e o artista entra outra vez num terreno ambíguo: fala-se da extinção das palancas negras gigantes ou das ditaduras africanas embalsamadas?
Kiluanji Kia Henda explica que em Angola “está tudo em stand-by à espera das eleições, que hão-de ser um momento de transição, como é sabido”. É em situações de crise que o discurso populista de ditadores como Mobutu se volta para o passado.
No filme, tal como na série de fotografias do ditador, saímos do terreno do luto e entramos no da mise-en-scène kitsch, no terreno da ironia. A palanca negra gigante deixou de ser um animal empalhado e é agora uma cópia em fibra num arquivo, mas ela continua a pensar que é um original. A palanca falsa chama-se Amélia Capomba, ficamos a saber pela voz de Aline Frazão, porque um erro de taxidermista lhe permitiu manter o cérebro. Já não é apenas um manequim de resina, sem alma, e resiste a ser um veículo para contar uma história sequestrada por um olhar enganador.
A palanca quer voltar à selva, ao estado puro, mas essa Natureza que abandonou pela cidade já foi contaminada pela guerra civil e destruída pela violência. Porque afinal tanto o colonialismo como o populismo dos ditadores forjam imagens artificiais da Natureza, que são esconderijos da violência do Estado, defende o artista. Na selva também se pode viver “o mais lancinante inferno”, pois somos expostos a coisas que não estão exactamente sob o nosso controlo
A selva, a Natureza, a floresta, o lugar do safari, de que o próprio artista também foi à procura depois da guerra, é igualmente um lugar ambíguo. Mas essa fragilidade, essa ambiguidade, pode ser vista como uma metáfora sobre a possbilidade de construir novas narrativas africanas, porque a selva e os animais não constroem ficções. É só uma questão de tempo até à regeneração.
Na última exposição que apresentou na mesma galeria, em 2014, intitulada a City Called Mirage, Kiluanji Kia Henda trabalhou a ideia de cidade a partir do deserto do Namibe, que faz fronteira com a Namíbia, toda uma metáfora sobre o desenvolvimento urbano actual que vemos em África mas também no Dubai. E, recentemente, foi possível ver na ArcoMadrid, a feira de arte contemporânea espanhola, os seus Objets Trouvés, fotografias em que corpos ou torsos negros masculinos compõem cenografias urbanas, contra uma parede de um edifício modernista ou sobre a cobertura de um anexo de um pátio. Estas esculturas-homens tiveram as suas cabeças substituídas por “objectos encontrados”, como uma antena parabólica ou um resto de uma tubagem. Tal como no trabalho actual, são corpos que questionam a sua identidade, entre a ironia, a morte e a pós-humanidade.
A exposição actual, que pode ser vista até 6 de Maio, funciona como uma única obra, com uma edição de cinco exemplares, que só pode ser adquirida na totalidade.