Scarlett Johansson e esta coisa da alma 2.0
Adaptação americana do clássico oriental da ficção-científica ciber-punk — surpresa das surpresas, Ghost in the Shell - Agente do Futuro é um digníssimo herdeiro dos originais.
Há quantos anos andávamos a ouvir falar de uma adaptação em imagem real de Ghost in the Shell, o manga visionário ciber-punk que Masamune Shirow escreveu em 1981 e que Mamoru Oshii levou ao cinema em 1995, numa das obras-primas da animação moderna? Porque haveria essa adaptação, ao fim deste tempo todo, de ser dirigida pelo inglês Rupert Sanders, ex-publicitário reconvertido em cineasta vistoso? E porque escolher Scarlett Johansson para interpretar a major (aqui já não chamada) Motoko Kusanagi, cérebro humano inserido num corpo artificial ampliado ciberneticamente, numa cidade-estado asiática futurista?
São demasiadas perguntas mas a resposta que interessa dá-se num instante: mais de 20 anos depois do filme de Oshii, Hollywood conseguiu transpor intacta a alma de Ghost in the Shell para novo corpo. É obra fazê-lo num filme onde tudo parece apenas ser um upgrade sofisticado de filmes anteriores: Scarlett Johansson é uma mera presença física, uma espécie de corpo vazio em busca de uma alma, e a sua major parece ser apenas uma conjugação da sua alienígena predadora em Debaixo da Pele de Jonathan Glazer com a sua trans-humana do Lucy de Luc Besson.
O sumptuoso design de produção de Jan Roelfs e o deleite com que a câmara de Sanders viaja por sobre esta megalópole virtual são aquilo que Ridley Scott faria se filmasse Blade Runner hoje — e se os constantes cabos electrónicos vos recordam a Matrix das irmãs Wachowski, também não estarão errados. Mas, mais do que parecer apenas derivativo, essa constante referência faz parte do próprio código genético da “mitologia” de Ghost in the Shell: o manga original de Shirow antecipou a primeira vaga ciber-punk (Neuromante de William Gibson, Blade Runner), o filme de Oshii foi assumido como influência pelas irmãs Wachowski, Rupert Sanders e a sua equipa não fazem senão fechar esse círculo, integrando igualmente ideias de Philip K. Dick (e, por arrasto, da adaptação semi-animada de A Scanner Darkly por Richard Linklater).
Isso corre o risco de tornar Ghost in the Shell num filme que chega tarde demais para manter intacto o visionarismo que norteou os originais. E seria fácil perder de vista que o centro — a alma, se quisermos — de Ghost in the Shell sempre foi a reflexão sobre as fronteiras entre o humano e o artificial, sobre a dimensão ética da “ampliação” do corpo com implantes cibernéticos, sobre a ténue linha que esses implantes criam entre realidade e projecção. O novo filme coloca, felizmente, essa reflexão no seu centro, mesmo que dentro de uma lógica narrativa mais “clássica”: a major de Scarlett Johansson passa o filme a ser “assombrada” por imagens do seu passado, e o “ciber-terrorista” que ela está a perseguir, sem que ela o saiba, pode ter em seu poder a chave que o desbloqueia. Tal como nos originais, este é um filme sobre um ser em busca da sua humanidade — isso, conjugado com o impressionante trabalho visual, torna este Ghost in the Shell num digníssimo sucessor que, mesmo com a sensação de aparecer “fora de tempo”, não desmerece em nada da sua origem. É mais, muito mais, do que seria de esperar.