Isabelle e Gérard à espera de que aconteça
É a delicadeza de Vale de Amor e das suas duas criaturas sexagenárias, Huppert e Depardieu: à espera de que o filme aconteça.
Gérard Depardieu fala na cena do beijo a Isabelle Huppert, Isabelle diz que não houve beijo, foi sobretudo hesitação — isto é a memória de uma troca de pontos de vista numa conferência de imprensa em Cannes. A cena do beijo está lá, aos 40 minutos de Vale de Amor: beijo e pedido de encore que não se sabe se se repete, quando as personagens, chamadas Gérard e Isabelle, estão atordoadas pelo calor, pelo embaraço de uma intimidade já gasta, pela culpa. Vão em peregrinação ao Vale da Morte, EUA, convocados pela carta do filho, que, antes de morrer, marcou encontro com os pais — que dele se tinham esquecido quando foram em frente com as suas vidas —, lançando-lhes um isco: vai aparecer.
A cena do beijo está lá, mas não resolve. Huppert e Depardieu têm cada um as suas razões. A paisagem “em branco” do Vale da Morte, sem referências, está à espera de ser preenchida pelas fantasias e memória de cada um. Não só de Isabelle (Huppert) e Gérard (Depardieu). Também, e fundamentalmente, do espectador.
Projecto pensado para exercitar a cinefilia do realizador Guillaume Nicloux — de um lado, os os filmes que reinventaram a mitologia dos grandes espaços americanos; do outro, a carreira de Ryan O’Neal (Love Story; Barry Lyndon...), para quem o projecto foi pensado —, tornou-se depois filme para actores franceses, alimentado com um suplemento de energia: fazer reencontrar dois gigantes, mais de três décadas depois de Loulou, o filme de Maurice Pialat em que ela, burguesa apaixonada pela energia proletária, e ele, o voyou em movimento, partiam a cama (“Tu m’ecrases les seins”/ “Je vais t’écraser autre chose”). Vale de Amor é malin no atordoamento do espectador. Lança iscos à espera de que sejam mordidos: Huppert e Depardieu chamam-se Isabelle e Gérard, ele é um actor francês que os americanos reconhecem, nasceu em Châteauroux, a mesma origem (proletária) do intérprete e da personagem, e ambos transportam o luto por um filho morto (Guillaume Depardieu). Mas é, simultaneamente, um filme a contracorrente de qualquer exibicionismo e afirmação autoritária de si.
Quer começar do zero com o par — e são duas vedetas, para além de serem espantosas criaturas —, balbucia o fantástico e fica à espera de se ver acontecer. Se entramos para o filme carregados com as expectativas de um reencontro, comoção pronta a usufruir, seremos despojados, obrigados a reconstituir a narrativa e a nossa memória — é a nada espalhafatosa beleza do filme e das suas criaturas sexagenárias, crianças dispostas, elas próprias, a começar de novo. Aqueles corpos já não falam um com o outro, o desejo não mora ali. Um beijo é uma hesitação (Loulou foi há muito; Huppert e Depardieu desenvolveram como que naturezas diferentes, ele a acontecer em coisas contraditórias, ela a aprofundar coerências). Nunca saberemos o que é que aparece no Vale da Morte, apesar das marcas vermelhas nos corpos deles. Gérard corre, assustado ou comovido, fulminado ou resgatado. Aparição? Não sabemos, não sabemos o que ele viu, mas é aí que Vale de Amor se mostra: algo nos apareceu.