Quanto vale a vida de um afegão?

Quase 16 anos depois da invasão do Afeganistão, os Estados Unidos não têm um processo padronizado para o pagamento de indemnizações às famílias dos milhares de civis afegãos que morreram ou ficaram feridos em operações militares conduzidas pelos Estados Unidos.

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Ataque americano em contra taliban em Kunduz, em 2016 Nasir Wakif/Reuters

Em Março de 2014, o exército dos Estados Unidos pagou a um cidadão afegão cerca de mil dólares (900 euros) como compensação por ter matado o seu filho, um civil, numa operação perto da fronteira com o Irão, de acordo com registos militares fornecidos à Reuters.

Seis meses mais tarde, outro pai afegão recebeu dez mil dólares (9200 euros) do exército norte-americano depois de o filho, também civil, ter morrido numa operação militar conduzida pelos americanos na mesma província.

Haji Allah Dad, de 68 anos, perdeu 20 familiares, incluindo o irmão e a cunhada, numa operação das forças especiais americanas e afegãs perto da cidade de Kunduz, no norte do Afeganistão, em Novembro de 2016.

Allah Dad disse que não recebeu qualquer dinheiro do exército americano, apesar de ter recebido uma indeminização do governo afegão.

Quase 16 anos depois da invasão do Afeganistão, os Estados Unidos não têm um processo padronizado para o pagamento indemnizações às famílias dos milhares de civis afegãos que morreram ou ficaram feridos em operações militares conduzidas pelos Estados Unidos.

Como os taliban

Os Estados Unidos começaram a indemnizar as famílias de vítimas afegãs porque os taliban estavam a fazer o mesmo.

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A abordagem norte-americana às indemnizações é de natureza arbitrária — enquanto força militar estrangeira, tentam avaliar no terreno quais são as sensibilidades culturais e regionais e negociar a partir daí.

Mas há activistas que dizem que o sistema é injusto e confuso para os afegãos que, muitas vezes, são pobres e pouco instruídos.

Um porta-voz do Pentágono disse que o exército delega a decisão sobre a quantia a pagar aos comandantes no terreno, pois estes estão melhor posicionados para julgar os incidentes.

“Os pagamentos de mortes no Afeganistão baseiam-se em normas culturais locais, em conselhos de parceiros afegãos e nas circunstâncias do acontecimento,” disse o porta-voz Adam Stump.

“Os comandantes americanos no terreno estão, portanto, capacitados para tomar decisões relativamente aos pagamentos, pois são eles que têm a melhor compreensão destes factores”, acrescenta Stump.

Não é claro como é que o exército americano transforma estes factores num padrão financeiro.

Washington começou a fazer “pagamentos de mortes” no Afeganistão em 2005, ao aperceber-se de que os talibã estavam a ganhar influência e oferecendo dinheiro aos civis depois de ataques americanos fatais, segundo o Center for Civilians in Conflict, um grupo de investigação e activismo sediado nos EUA.

Coreia abriu precedente

Segundo a legislação nacional e internacional, os Estados Unidos não são obrigados a pagar indeminizações a civis mortos nas suas acções militares. No entanto, é prática estabelecida fazer este tipo de pagamentos desde a Guerra da Coreia, na década de 1950. Em alguns casos, os EUA pagaram indemnizações a familiares de civis mortos durante o conflito no Iraque.

Os críticos avisam que a falta de padrões nas indemnizações significa que as vítimas civis do Afeganistão são tratadas de maneira desigual, à medida que o conflito se prolonga.

O principal comandante americano no Afeganistão disse em Fevereiro que são necessários mais milhares de soldados para quebrar o impasse com os talibã, pelo que os problemas vão continuar.

“É muito preocupante estarmos a falar de como melhorar a forma de desenvolver as operações sem criarmos um procedimento padronizado para realizar pagamentos de mortes”, disse Marla Keenan, directora no Center for Civilians in Conflict.

“Um homem em Kandahar pode receber quatro mil dólares pelo seu carro estragado, enquanto uma mulher em Gardez recebe apenas mil dólares pelo filho que morreu. Os civis merecem mais,” acrescentou Keenan.

De acordo com documentos militares norte-americanos que a Reuters obteve ao abrigo do Freedom of Information Act (lei da liberdade de informação), as forças dos Estados Unidos pagaram cerca de 1,2 milhões de dólares (1,1 milhões de euros) a famílias afegãs pelas mortes de pelo menos 101 afegãos e ferimentos a outros 270, entre finais de 2013 e 2016.

Quase todas as vítimas eram civis. Estes documentos, que nunca tinham sido publicados, indicam que cinco das indemnizações foram pagas a membros do governo afegão.

As quantias variam, mesmo em casos aparentemente parecidos.

“Isto demonstra que cada unidade estabelecia a sua própria política e que não existe nenhum procedimento padrão (nem mesmo orientação financeira) em todo o exército relativamente a como devem ser feitas estas indemnizações e qual deve ser o seu valor,” disse Keenan.

Pagou o Governo de Cabul

No caso de Allah Dad, o dinheiro chegou não dos Estados Unidos, mas sim do Governo afegão.

O ataque que matou os familiares de Dad em Boz, perto de Kunduz, foi alvo de uma investigação do exército americano, que concluiu, em Janeiro, que 33 civis tinham morrido e 27 ficado feridos quando forças especiais dos Estados Unidos e do Afeganistão contra-atacaram combatentes talibã que estavam a usar casas civis, tendo pedido apoio aéreo americano.

Os Estados Unidos não realizaram quaisquer pagamentos e deixaram que fosse o Governo do Afeganistão a decidir o que queria fazer, afirmou o Capitão Bill Salvin, um porta-voz das forças americanas no Afeganistão. As razões desta decisão não são claras.

Allah Dad afirmou que os Estados Unidos também deviam ter assumido a responsabilidade pelas vítimas civis.

“Os americanos têm de ser responsabilizados pelo que fizeram e têm de pagar por toda a gente que morreu ou ficou ferida neste ataque”, disse Allah Dad. Nove familiares seus também ficaram feridos.

Allah Dad foi obrigado a deixar o emprego de professor e agora trabalha nos seus campos de melancias e milho.

“O Governo afegão prometeu pagar pelas nossas casas, carros, máquinas e gado, mas até agora não pagaram”, desabafou.

Quando questionado sobre o caso de Allah Dad, o Pentágono respondeu que não faz comentários sobre incidentes específicos. O governo local de Kunduz confirmou o relato de Allah Dad sobre a indemnização e sobre o número de familiares mortos.

“Compreendemos que nenhuma quantia monetária pode compensar o sofrimento e a perda de vidas humanas,” disse Salvin.

Um dos casos mais conhecidos de pagamentos de mortes aconteceu depois de um ataque aéreo americano a Kunduz, em 2015, que destruiu um hospital dirigido pelos Médicos Sem Fronteiras, matando 42 pessoas e ferindo outras 37.

O incidente foi alvo da cobertura dos meios de comunicação internacionais e recebeu a atenção pessoal do então Presidente Barack Obama.

“O Presidente teve um interesse pessoal no incidente de Kunduz e, em parte, essa é a razão do nosso interesse,” conta um antigo alto responsável da Casa Branca, acrescentando que era raro responsáveis de Washington estarem envolvidos em pagamentos de mortes no Afeganistão.

No caso deste incidente, os Estados Unidos pagaram, em média, três mil dólares (2700 euros) pelos feridos e seis mil dólares (5500 euros) pelos mortos. Reuters

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