A praxe como fenómeno social: análise e recomendações
Os órgãos de governo das instituições de ensino superior devem adoptar uma atitude activa face a atitudes de violência e aos abusos que ameacem direitos, liberdades e garantias no contexto académico, podendo, caso contrário, vir a ser civilmente responsabilizados.
1. O estudo “A praxe como fenómeno social” foi desenvolvido por uma equipa de investigadores da Faculdade de Letras da UP, do Centro de Estudos Sociais da UC e do CIES/ISCTE-IUL, tendo procedido a um diagnóstico sociológico do fenómeno no ensino superior português. Com base numa metodologia plural – inquéritos, entrevistas, análise documental, grupos focais e observação directa – apresenta-se uma análise multifacetada de uma realidade complexa, que importava conhecer em profundidade, não só pelo que ela revela acerca das práticas e subjectividades da juventude universitária, mas também porque tal conhecimento é requisito fundamental para a definição de medidas que previnam excessos e abusos.
2. A praxe constitui um ritual de iniciação e de passagem num contexto marcado por uma vincada hierarquia e no qual se destacam duas dimensões distintas: por um lado, é uma forma de socialização revestida de uma forte dimensão festiva e de espectacularização, reforçando laços de pertença a uma nova condição social eminentemente distintiva; por outro lado, a praxe é marcada por ritualismos que muitas vezes assumem formas de assédio moral, humilhação, coacção e violência física e/ou simbólica. O seu carácter contraditório relaciona-se com os dilemas da juventude no que se refere à massificação do ensino, à inflação dos diplomas, à perda do seu valor relativo e à generalização da moratória nas transições para a vida adulta, num cenário marcado por culturas juvenis fundadas na insegurança, incerteza e precariedade.
3. Entre a variedade fenomenológica das praxes destacam-se elementos performativos tais como: palavras de ordem e gritos de guerra; cânticos agonísticos, de depreciação e escandalosos, assentes na celebração da sexualidade e da virilidade masculina; praxes de exercício físico, de punição, de medo, de susto, de “nojo” e de troça; praxes de jogos e charadas, além de actividades com uma intenção pedagógica, cultural ou solidária. Apesar desta diversidade, existem elementos unificadores, como o seu carácter de ritual de passagem, assente na “desbestialização do caloiro” com vista ao renascimento identitário na entrada para uma “nova vida”; além das características fundamentais da sua organização assentes numa hierarquia apoiada numa divisão entre quem manda e quem obedece, impondo a verticalidade, a reverência à autoridade e o respeito ao superior como princípios absolutos.
4. A análise mostrou-nos a existência de um conjunto diferenciado de modos de relação com o fenómeno. As instituições variam entre “atitude de rejeição e condenação absoluta”; uma “atitude de integração preventiva”; e uma “atitude de legitimação e normalização institucional”. Mais de metade não concordam com a proibição da praxe no campus e mais de 80% reúnem-se com as estruturas de praxe. Os dirigentes estudantis oscilam entre uma “atitude favorável” e uma “atitude equilibrista”. Cerca de 79% não concordam com a proibição no campus e 83% reúnem-se com as estruturas de praxe.
5. O envolvimento dos estudantes nestes rituais é autojustificado pela eficácia que eles garantem na integração no grupo, reforçando a adesão a uma nova identidade coletiva. Para muitos/as, a praxe apresenta-se como um acto “normal” e “natural”, enquadrado por um sistema de legitimação que envolve a comunidade académica e até a comunidade local. A praxe é percebida como um momento excepcional e irrepetível, sendo paradoxalmente referido o seu cariz nivelador, que apela à igualdade entre estudantes. A praxe é também valorizada como um conjunto de usos e costumes considerados “tradicionais”, embora se trate de uma “tradição” permanentemente recriada e “reinventada”. E é ainda representada como um ensinamento da vida e para a vida. Da vida, porque não se pode desligá-la do quotidiano do mundo escolar e académico nos quais emerge; para a vida, porque ela actua como uma “sociabilidade antecipatória”, antecipando o futuro laboral, onde imaginam prevalecer a obediência, a hierarquia, a disciplina e a sujeição. O ethos da praxe é pois marcado pela inculcação de valores antidemocráticos e de sacralização da autoridade.
6. No relatório apresentam-se diversas recomendações destinadas a cumprir os seguintes objectivos, que consideramos prioritários:
(i) Promoção de uma cultura de segurança e apoio às vítimas. Não nos revemos no policiamento repressivo de comportamentos. Defendemos uma cultura de segurança e de prevenção de abusos que requer a consolidação de estruturas de apoio psicológico e jurídico, incluindo uma linha gratuita de apoio e uma monitorização de proximidade por parte do provedor do estudante.
(ii) Não legitimação institucional das estruturas de praxe. As autoridades académicas devem recusar o reconhecimento das estruturas não legitimadas da praxe e devem actuar em conjunto com as autarquias no combate ao assédio, violência e humilhação. Propomos o reforço do financiamento às associações de estudantes mas que se acabe com a possibilidade de, por essa via, se financiarem actividades de praxe (que é feito através das Associações de Estudantes, que atribuem apoio financeiro às estruturas informais de praxe).
(iii) Promover a informação e o debate entre os estudantes. Para que a escolha dos jovens seja informada, importa transmitir aos estudantes um conhecimento sólido sobre o significado da praxe, nomeadamente através da difusão anual de um panfleto realçando o seu carácter não obrigatório. Propomos que seja incluído no ensino secundário um tópico específico sobre o tema, bem como a realização de sessões de esclarecimento. Aconselhamos uma edição do Parlamento dos Jovens subordinada ao tema das Praxes Académicas. Propomos ainda a construção de um site que centralize informação e recursos sobre a praxe.
(iv) Oferta de alternativas à praxe. Para que a praxe seja uma opção plenamente voluntária, deve haver liberdade de escolha. Daí que consideremos fundamental a criação de alternativas à praxe, através de semanas de receção ao novo aluno visando a sua integração na vida académica, com base no estímulo a atividades lúdicas, pedagógicas e formativas.
(v) Responsabilidade irrenunciável dos órgãos de gestão. Perante a jurisprudência já consolidada, é possível dizer-se que os órgãos de governo das instituições de ensino superior devem adoptar uma atitude activa face a atitudes de violência e aos abusos que ameacem direitos, liberdades e garantias no contexto académico, podendo, caso contrário, vir a ser civilmente responsabilizados por não proibirem ou não sancionarem adequadamente tais práticas ilícitas, contrárias à dignidade da pessoa humana.
Elísio Estanque, João Mineiro, João Sebastião, João Teixeira Lopes, José Pedro Silva, Nuno Alves