Um carro e uma faca bastam ao Daesh para espalhar o terror na Europa
Polícia britânica identificou atacante de Londres: de 52 anos, tinha longo cadastro criminal mas nenhuma ligação conhecida ao islamismo. Oito pessoas foram detidas.
O que tem em comum Khalid Masood, o suposto “soldado do Daesh” que na quarta-feira matou quatro pessoas junto ao Parlamento de Londres, com o jihadista Michael Adebolajo que degolou um soldado britânico numa rua de Woolwich em Maio de 2013, os irmãos Ibrahim e Salah Abdeslam que levaram a cabo os ataques terroristas de Paris em Novembro de 2015, ou ainda Anis Amri, o condutor do camião que investiu contra um mercado de Natal da cidade de Berlim, um mês e um ano mais tarde?
Além de todos serem responsáveis por acções terroristas em território europeu, inspiradas pela ideologia do Daesh, parecem encaixar num mesmo perfil, ou corresponder a um idêntico padrão, no que diz respeito ao seu relacionamento com as autoridades: são todos homens, que estão ou estiveram envolvidos em actividades criminosas que os levaram a ser detidos, e que terão numa determinada altura suscitado o interesse e vigilância da polícia por suspeitas de ligações a indivíduos ou organizações islamistas – sem que nenhum deles tenha sido classificado como um risco ou uma ameaça para a segurança.
Nas informações que a Scotland Yard avançou até agora sobre o homem que conduziu um automóvel alugado pelo passeio da ponte de Westminster, atropelando dezenas de pessoas, e depois atacou um agente da polícia à entrada do Parlamento, há dois elementos que destoam ligeiramente deste retrato: Khalid Masood já não era jovem, tinha 52 anos, e nas suas referências policiais não existia qualquer suspeita de radicalização – nem sequer como uma “figura periférica” nas redes jihadistas, como a primeira-ministra britânica, Theresa May, chegou erroneamente a avançar.
Mas Masood, que recorria a diferentes nomes, “era conhecido da polícia, e já tinha sido condenado por vários crimes de agressão, incluindo na forma agravada, posse de arma ilegal e ofensas à ordem pública. A sua primeira condenação aconteceu em Novembro de 1983, por danos, e a última foi em Dezembro de 2003, por posse de arma branca. Nunca foi suspeito de actividade terrorista e não havia informação, ou investigação, sobre uma conspiração para executar um acto terrorista”, corrigiram as autoridades.
Britânico, originário da região de Kent, Khalid Masood estaria a residir no centro da Inglaterra, nos arredores da cidade de Birmingham (onde foi alugado o Hyundai Tucson com que executou o ataque). Desconhece-se a sua profissão. Os seus antigos vizinhos não esconderam o choque ao descobrir que o homem que viam diariamente com a família, e que descreviam como afável, era afinal um terrorista. “Vi as fotografias na televisão e soube logo que era o homem que vive aqui ao lado. Muito calmo, reservado, tinha uma família simpática. Era ele, a mulher, uma jovem asiática, e uma criança pequena que ia à escola. Costumava vê-lo a jardinar, nunca deu problemas nenhuns. Nem quero acreditar nisto”, declarou a sua antiga vizinha, Iwona Romek, que disse ainda ao The Guardian que a família tinha mudado de casa, um tanto à pressa, por alturas do Natal – mas não sabia para onde.
A surpresa exibida por Romek foi semelhante à perplexidade demonstrada pelos vizinhos e conhecidos dos bombistas belgas que atacaram em Paris, cujo comportamento e até aparência nada tinha a ver com a imagem mental de um fundamentalista islâmico: bebiam álcool e saíam com várias mulheres, consumiam e vendiam drogas, não frequentavam mesquitas nem seguiam os rituais religiosos.
Os mais recentes estudos académicos sobre o fenómeno da radicalização na Europa mostram que a maioria dos indivíduos que aderem à causa islamista tem muito maior familiaridade com a violência e a marginalidade do que com a teologia ou a ideologia da jihad (guerra santa): dois terços dos suspeitos de ataques têm registo criminal e associações a redes criminosas. A sua doutrinação para a causa do Daesh – que segundo os especialistas é muitas vezes apresentada como uma forma de redenção dos delitos passados – acontece frequentemente no contexto prisional. E a radicalização é um processo rápido de semanas ou meses, que não implica necessariamente o conhecimento do islão ou o treino para o combate, manuseamento de armas ou fabrico de explosivos: muitos destes terroristas “limitam-se” a seguir instruções simples fornecidas online.
Ziyed Bem Belgacem, que ainda este sábado esfaqueou uma agente da polícia no terminal do aeroporto de Orly, em Paris, encaixa neste perfil na perfeição. O francês de 39 anos tinha um longo cadastro por roubo, violência e tráfico de drogas, mas não estava fichado como potencial terrorista apesar de as autoridades terem recebido indicações de radicalização islâmica na prisão, já em 2015.
Mas a mesma tese não pode, pelo menos por enquanto, ser aplicada ao caso de Khalid Masood. A sua motivação não é ainda conhecida, e não há elementos concretos que o liguem ao universo islamista. Ainda assim, como observava ao Telegraph Will Geddes, director do ICP Group (que actua no sector da segurança e protecção), “pelo método do ataque, que é low-tech, usando um carro e uma faca, é muito provável que o suspeito soubesse que ia morrer. Este tipo de lobos solitários está habitualmente preparado ou para se matar ou para morrer em resultado das suas acções. Todos os indícios apontam para uma acção guiada pelo Estado Islâmico”.
Em menos de 24 horas, o Daesh assumiu a responsabilidade pelo atentado em Londres, através de uma comunicação da Amaq, a “agência” do grupo islamista. “Um soldado do Estado Islâmico efectuou ontem um ataque em frente do Parlamento britânico em Londres, em resposta ao apelo de tornar alvo os cidadãos de países participantes na aliança”, dizia a nota, num texto decalcado das anteriores reivindicações do grupo após os atentados de Paris, Nice ou Berlim, todos no cumprimento daquela instrução que já remonta a 2014.
A linguagem utilizada no texto em que o Daesh reclama a autoria sugere que o grupo não esteve na origem do incidente, isto é, não foi o responsável directo pelo seu planeamento e execução. Segundo explica a jornalista do The New York Times, Rukmini Callimachi, especialista em Al-Qaeda e Daesh, a organização islamista só reivindica os ataques que efectivamente conduziu ou inspirou – nos últimos casos, pela Internet, o que explica o carácter “rudimentar” dessas acções.
Para Callimachi, para se ter certezas sobre o terrorista de Londres, falta aparecer essa peça fundamental que permitirá estabelecer a sua ligação ao Daesh: um documento que determine a existência de um contacto prévio com a organização; uma gravação onde Masood jure a sua lealdade e aliança a Abu Bakr al-Baghdadi, o "califa" do Estado Islâmico.
As ligações de Khalid Masood ao jihadismo estão no cerne da investigação em curso, cujos detalhes estão sob segredo. Em poucas horas, a polícia conseguiu traçar o percurso do atacante desde Birmingham até Londres. Várias acções de buscas, e detenções, decorreram em Birmingham, em Brighton, na zona sudeste de Londres e na região de Carmathensire, no País de Gales – e apesar de ter executado o ataque sozinho, as autoridades notam que todos os “lobos solitários” têm algum tipo de apoio. Para já, oito pessoas foram detidas sob suspeita de preparação de ataque terrorista: três mulheres (de 21, 26 e 39 anos de idade) e cinco homens (de 23, 26, 27, 28 e 58 anos).
Logo pela manhã desta quinta-feira, pouco antes do início dos trabalhos na Câmara dos Comuns, foi realizada uma breve cerimónia à porta da sede da Scotland Yard. Ao final da tarde, milhares de londrinos juntaram-se numa vigília em Trafalgar Square, onde reafirmaram a sua intenção de seguir as suas vidas sem medo. “Os terroristas não vão derrotar-nos; nós vamos derrotar os terroristas”, afirmou a ministra do Interior, Amber Ruud.
Notícia alterada para corrigir o modelo do automóvel usado no ataque: foi um Hyundai Tucson e não um i40 como erradamente se escreveu