Brexit: o porquê de ficar

Vou ficar porque quero, porque trabalho aqui há nove anos, porque de onde venho não há trabalho, futuro ou esperança, porque em nove anos construí uma carreira, porque, contra a cultura instituída no meu país da origem, a meritocracia ainda existe para onde vim

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Hannibal Hanschke/Reuters

Parece que os portugueses, os mesmos portugueses radicados no Reino Unido que de há não sei quantos anos para cá me diziam ser uma impossibilidade prática a saída deste país da União Europeia, se preparam agora para saírem eles mesmos e em primeiro lugar antes que a polícia e os cães nos batam à porta.

 

Mas eu não, eu não vou partir, vou ficar, e vou ficar porque quero, porque trabalho aqui há nove anos, quase dez, porque de onde venho não há trabalho, futuro ou esperança, porque em nove anos construí uma carreira, trabalhei, e ainda trabalho, por três ou quatro ingleses, das 3 da manhã às 8 da noite, fins-de-semana, feriados e férias incluídos, porque, contra a cultura instituída no meu país da origem, a meritocracia ainda existe para onde vim, para Londres e para o ensino, onde quase nove milhões de almas tão díspares e diversas precisam urgentemente umas das outras no sentido de um mundo melhor, o nosso, este ao nosso redor, para o qual trabalhamos todos os dias educando alunos, pais, professores e outros profissionais, do acordar ao deitar, respirando, inspirando, uma forma de vida, a nossa mais este lugar ao sol conquistado dia após dia, ano após ano, sacrificando família, amigos e tantas vezes quem mais nos quer e por nós espera quando a noite cai e o dia continua sem fim à vista. 

 

Mesmo que nos insultem na rua, e insultam, mesmo que nos chamem polacos, e chamam, mesmo que nos digam para voltarmos para a nossa terra quando esta é a nossa terra agora que nela vertemos tantas lágrimas e todo o sangue, mesmo que cuspam no chão à nossa passagem, e cospem, ladrando contra uma caravana como cães com medo, quando no fim basta olhar para eles, ingleses caucasianos de cauda entre as pernas, cientes da sua própria incapacidade e ignorância diante de um mundo que há muito os deixou para trás agarrados às saias das mães e a chuchar no dedo. 

 

Infelizmente, se há verdade trazida com o Brexit é a do empobrecimento das classes cuja miséria social foi a maior responsável pelo voto no mesmo, saudosas de outros tempos e outros dias, crentes numa vingança contra quem, na mesma situação mas em línguas diferentes, teve de sair de onde nunca foi para poder ser noutro lugar, este a partir de onde vos conto. Os ingleses, ao menos, nunca tiveram de emigrar. 

 

Terminando por onde comecei, não fico apenas porque quero ou por teimosia, mas porque posso, porque ao fim de seis anos pedi a cidadania e traí a pátria (ou assim me contam), mais ou menos três anos antes do Brexit, e o passaporte britânico está ali bem guardado na gaveta desde Novembro do ano passado, com fotografia e tudo, para grande espanto de quem, no aeroporto e à partida e à chegada, olha para mim e para estes olhos negros num cabelo negro, farto, mouro, quase árabe e às vezes judeu, mas por certo estrangeiro, quando no fundo os estrangeiros são eles, embrutecidos numa língua só e condenados à extinção no dia em que fecharem as fronteiras desta ilha e deste reino, unido na bizarria, vítima de si próprio numa estupidez consanguínea. A ilha, esta ilha, já há muito é nossa e os ingleses ainda não perceberam.

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