Repita lá outra vez: psicadélico quê?
Do início ao fim, uma banda em ebulição, em estado de graça, incapaz de falhar.
Começaram por prometer que, só este ano, iriam por a circular na nossa corrente sanguínea o equivalente a uma overdose de música. Oito álbuns, disseram eles. Em 2017, seríamos agraciados com quase uma dezenas de novos disco dos King Gizzard And The Lizard Wizard. Mais moderados, corrigiram. Não seriam oito, mas apenas uns razoáveis cinco álbuns. Tratando-se de outra banda que não o septeto australiano liderado por Stu McKenzie, tal anúncio seria acompanhado de dúvida razoável e de prognóstico nada reservado. Porquê apressarem-se a gravar tanto disco, sôfregos, e, obviamente, sem tempo e discernimento para separarem o que valerá realmente a pena de chouriços para encher a discografia prometida? Mas estes são mesmo os King Gizzard And The Lizard Wizard, banda de nome tão absurdo quanto impressionante tem sido a sua capacidade para, edição após edição, se revelarem grupo de mil rostos, sempre à vontade na mudança da pele que escolhem.
Flying Microtonal Banana é o sucessor do impressionante Nonagon Infinity, álbum imaginado para ser tocado eternamente, fim e início ligados de forma a que o ouvinte não perceba quando um chega e o outro regressa; álbum que, por sua vez, chegou depois de Paper Mâché Dream Balloon, onde a banda se aventurava numa inspirada releitura do folk-rock psicadélico de base acústica da década de 1970. Omnívoros insaciáveis, músicos eternamente curiosos e muito rigorosos nas explorações a que se entregam, os King Gizzard And The Lizard Wizard assinam agora aquele que, pela abrangência do olhar e pela intensidade da interpretação, será um dos maiores destaques de uma discografia já deles recheada.
Rattlesnake, a primeira canção, é rock minimal movido a batida motorik preparado para inflamar a pista de dança. São mais de sete minutos colados na mesma batida, no mesmo riff, na mesma palavra repetida e repetida e repetida (e poderíamos ouvir mais sete minutos iguais a esses que, virtude de uma banda oleadíssima nos segredos do groove, não nos cansaríamos). Estes, porém, são os King Gizzard And The Lizard Wizard a quem já fôramos apresentados anteriormente —um imaculado combo kraut-space-rock, em muito breve resumo. O que chega em seguida é toda uma revelação — entre a sobrepovoada nação rock psicadélica de geração recente, os King Gizzard destacam-se pela produtividade e por uma imensa capacidade inventiva.
O álbum, tal como os quatro que se lhes seguirão, é definido pela banda como uma exploração da música microtonal, ou seja, aquela em que são usados intervalos musicais inferiores ao meio-tom habitual na música ocidental. No caso dos King Gizzard & The Lizard Wizard isso implica que, vasculhando entre todo o espaço novo que se abre entre a tecla branca do piano e a preta que imediatamente lhe sucede (é essa a medida do meio-tom), se abriu todo um novo mundo de possibilidades. Mais: consciente de que a música microtonal é a medida, por exemplo, da música clássica indiana, a banda lançou o olhar para mais longe. E é aqui que chegamos ao que interessa em Flying Microtonal Banana. Não são os King Gizzard And The Lizard Wizard enquanto mães da invenção, mas criam um festim de inventividade que impressiona a cada nova visita.
Enquanto a zurna, instrumento de sopro balcânico, persa e otomano, troveja sobre as canções, ouve-se uma banda capaz de ser, à uma, Herbie Hancock, Sun Ra, Mike Ratledge, o extraordinário teclista dos Soft Machine, e um grupo de percussão sul-americano (Melting é título certeiro). Uma banda em que o blues sibilino da Magic Band de Captain Beefheart e o funk explosivo dos Funkadelic iniciais, ainda sob a influência decisiva de Jimi Hendrix, são ponto de partida para descobrir encantamento magrebino (Anoxia). Uma banda que é tão hábil na entrega ao momento, o que confere a estas gravações uma vivacidade de jam, quanto na definição em estúdio do som — “sente-se” o calor da sala e apercebe-se nitidamente cada instrumento.
O que mais impressiona é como nada soa pensado e maturado, como não parece haver qualquer intelectualização do conceito a que a banda se propôs. Do início ao fim, canção após canção, podemos ignorar todas as pontes que os setes australianos estão a construir, podemos pôr de parte o trabalho de taxidermia musical e entregarmo-nos ao efeito puramente físico que esta música tem em nós. Do início ao fim, uma banda em ebulição, em estado de graça, incapaz de falhar. Vão ser cinco álbuns em 2017? Só cinco? Que pena…