Impedir abusos, defender direitos, liberdades e garantias é connosco e não com Sócrates
Temo mais do que um culpado que escape uma justiça persecutória que possa ser motivada politicamente.
Desculpem este longo título que é intencionalmente programático, mas tinha de ser. Toda a gente sabe que em matérias de críticas a José Sócrates, político, deputado, ministro, primeiro-ministro, cidadão público, não tenho lições a receber de ninguém. De há muito me apercebi que havia algo de muito errado na sua actuação pública, mesmo naquela que não era susceptível de constituir crime. Desde a história das marquises, passando pelas histórias das ETAR, do Freeport, do currículo académico, das rasuras na ficha biográfica de deputado, do contrato com Figo e muito mais, era-me factualmente evidente que este homem era capaz de tudo, embora eu não soubesse da dimensão do tudo. Como já referi, a ficha biográfica de deputado rasurada em fotocópia foi para mim a epifania, porque eu sabia bem como as coisas funcionavam na Assembleia e tudo aquilo era tão completamente implausível que tinha de haver, numa expressão plebeia, marosca.
Mais tarde, na comissão de inquérito parlamentar sobre as interferências de Sócrates na liberdade de expressão, através da tentativa de usar a PT para comprar a TVI com o objectivo de calar as vozes que lhe eram incómodas, no quadro de outros abusos do poder que levaram os magistrados de Aveiro a acusá-lo, eu pude ter em primeira mão acesso ao modo como uma parte importante da elite do poder económico e político mentia com a maior displicência e desaforo para proteger Sócrates. A maioria deles está agora indiciada no mesmo processo da Operação Marquês, o que não me surpreende de todo.
Depois, há um julgamento que qualquer pessoa pode fazer a partir das explicações absurdas que Sócrates deu e dá sobre o seu actual processo, que insultam de tal maneira a inteligência e o bom senso, que são ofensivas para qualquer pessoa. Ele quer-nos convencer que tinha com um amigo, cujos negócios dependiam em muito do acesso ao poder político, uma espécie de contrato para o “pôr por conta”. Esse “pôr por conta” não tinha contabilidade, nem limites, fluindo centenas de milhares de euros por todo o lado, uma parte em numerário, transportado por um motorista, porque, dizia Sócrates, desconfiava dos bancos. Vá contar essa a outro.
Sócrates hoje está sozinho no seu labirinto. A direita que o louvou como o “social-democrata” do PS, como aquele que tinha “roubado” o programa ao PSD, que andou ali a fazer-lhe a corte nos interesses e na política, agora, certamente por complexo de culpa, vai lá apedrejá-lo como se nada tivesse que ver com o homem. Mais, em vários momentos cruciais, protegeu-o de acusações muito semelhantes àquelas de que hoje lhe faz o Ministério Público.
Na comissão de inquérito parlamentar, por cuja existência pugnei bastante sozinho, o PSD indicou como seu porta-voz Agostinho Branquinho, que depois de assistir à inquirição dos responsáveis da Ongoing, envolvidos na trama de Sócrates, acabou por ir para lá trabalhar como assalariado. Mas a verdade, é que quando se tratou de chegar às conclusões do inquérito, por uma intervenção pessoal de Branquinho, Miguel Relvas e Passos Coelho, travaram tudo o que incriminava Sócrates, “porque não era politicamente conveniente” e era “um ataque pessoal”. Repito o que já escrevi há muitos anos sobre Sócrates e as cumplicidades do PSD: estamos conversados.
Hoje Sócrates é um proscrito, por muito que se engane a si próprio com sessões de prosélitos. Foi vítima de si próprio em primeiro lugar, mas também de uma política de fugas de informação sistemáticas, de que, aí sim, tem razões de queixa. Embora formalmente ainda não tenha sido acusado de nada, foi vítima na praça pública de uma política de fugas com o mais que claro dedo do Ministério Público, destinada a condicionar a opinião pública. Ora, para além do crime que constituem as fugas de informação, o problema é de cidadania, porque a publicação, certamente selectiva, de dados do processo, atenta contra as nossas liberdades, o nosso direito à defesa. Como é boa para a comunicação social e para o voyeurismo colectivo, é aceite com demasiada complacência. Hoje é com Sócrates, mas amanhã é com qualquer um, seja culpado, seja inocente.
Também por isso sou absolutamente contra os sucessivos adiamentos dos prazos que têm sido concedidos pela procuradoria aos magistrados que estão encarregados do inquérito, e, em particular, na sua última versão que, de facto, acaba com qualquer obrigação de prazo. A questão não pode ser vista apenas em termos de legalidade, mas em termos de cidadania. A escolha constitucional da presunção da inocência é uma escolha de cidadania, do modo como queremos viver civilizadamente em conjunto, não dos juristas, nem dos advogados, nem dos polícias.
Aqui já deixa de ser Sócrates (embora também seja) para ser um problema de todos nós, dos nossos direitos, liberdades e garantias. Não é a questão jurídica da legalidade da decisão, nem sequer da constatação de que essas contínuas renovações de prazos possam ser necessárias, mas a concepção megalómana que o Ministério Público tem do processo, para meter tudo no saco da Operação Marquês, é um abuso legal, ao manter alguém acusado na praça pública indefinidamente. Sim, pode haver abusos persecutórios alicerçados numa legalidade objectiva, mas mesmo assim excessivos e ameaçadores para um cidadão, seja culpado ou inocente. Já referi a minha convicção subjectiva da culpabilidade de Sócrates — que, insisto, nada vale —, mas tenho de admitir que ele ou qualquer outro seja inocente e recusar a contínua destruição de uma vida normal pela utilização do imenso poder que tem a Justiça, quando abusa da sua capacidade, que a tem, de triturar a vida de alguém. Hoje é com Sócrates, mas amanhã é com qualquer um, seja culpado, seja inocente.
E não há argumento qualquer de necessidade, como o que se dá, também com base numa fuga do processo, das cartas rogatórias enviadas para diferentes países. E se os angolanos ou os luxemburgueses não responderem a tempo, ou não responderem nunca? Fica tudo parado de novo? Na justificação da procuradora abre-se um novo protelamento, mudando aqui a sua posição prévia de impor um limite fixo. No entanto, por que razão é que, não havendo prescrição tão cedo para os crimes de corrupção, aqueles que tudo indica têm sido mais difíceis de provar, o Ministério Público não acusa já com o que tem e deixa para depois outras acusações?
Em vez de querer andar a fazer um megaprocesso de Sócrates, Ricardo Salgado, Granadeiro, Carlos Silva, Bava, Vara, etc., etc., podia avançar com as acusações que de há muito anda a sugerir ter provas, como a fraude fiscal, e depois processa de novo, e de novo, quantos os crimes que entretanto venha a considerar ter provas sólidas? Não foi assim com Vale de Azevedo? A não ser que se pretenda fazer um processo de um período da história portuguesa e, aí sim, pode haver uma intencionalidade política, como, aliás, se sugere com alegria no comentariado à direita. E aí a pergunta sobre o que é que aconteceu com o BPN passa a ter sentido.
Embora isso não tenha qualquer valor jurídico, já disse que estou convicto de que Sócrates é culpado da maioria das coisas de que é acusado, da fraude fiscal à corrupção. Porém, isso não me impede de me preocupar pelos abusos que, não lhe dando razão, são preocupantes para todos, para além do estrito mecanismo das regras jurídicas, por razões de cidadania. Com o Ministério Público essas preocupações não são de agora; vêm de muito antes, quando um procurador teorizava que, em casos em que não se conseguia fazer provas, as fugas de informação funcionavam como punição.
Em processos como o da Casa Pia revelou-se uma perigosa tentação de fazer uma “pesca de arrasto” contra os políticos em geral e, num ou noutro caso, em processos de pedofilia, no processo dos skinheads, houve cedências a uma opinião pública e a uma imprensa justicialista que clamava por sangue antes de clamar por provas. Em nenhum dos casos, as pessoas envolvidas me eram particularmente antipáticas, pelas suas ideias ou práticas, como é o caso de Sócrates, mas temo, mais do que um culpado que escape, uma justiça persecutória que possa ser motivada politicamente, nem que seja apenas por aquilo que os sociólogos chamam as “presunções prévias” que os magistrados tem sobre a sociedade, a política ou a justiça. Estas preocupações fazem parte da essência da nossa tradição humanista.