A esquerda, a direita e a liberdade de expressão
Os políticos no poder, em geral, gostam pouco da liberdade de expressão.
Em Portugal, dado o facto de termos tido uma prolongada ditadura de direita, com direito a censura prévia, a tradição diz que a esquerda é a favor da liberdade de expressão e a direita contra. Mas, na verdade, não é bem assim.
O poder, em geral, quer seja de esquerda ou de direita, quer seja político, económico ou outro, não gosta da crítica e, no nosso país, nem sequer do escrutínio. E, por isso, os nossos poderosos, sejam de esquerda ou de direita, sempre que podem, mudam as leis ou recorrem aos tribunais, com o intuito de intimidar e calar ou destruir os adversários.
O actual ministro dos Negócios Estrangeiros, por exemplo, que, quando estava na oposição antes de pertencer ao governo de José Sócrates, desenvolvia publicamente raciocínios inteligentes e contundentes, depois de pertencer a esse executivo, notabilizou-se pelos seus esforços na chamada regulação da actividade jornalística, nomeadamente afirmando que o combate ao jornalismo de sarjeta é um direito/dever de cada uma das suas vítimas e do conjunto dos cidadãos (...). Eu limito-me a acrescentar que esse combate é também um direito/dever da profissão, em sistema de auto-regulação. Haveria, assim, os jornalistas puros e os jornais puros e os jornalistas porcos e os jornais porcos que, naturalmente, deveriam ser punidos...
As interferências na independência da comunicação social no governo de Santana Lopes também não desmereceram: quem se esquece do afastamento do actual Presidente da República das suas funções de comentador na TVI após as críticas do então ministro dos Assuntos Parlamentares ? Dessa vez, combatia-se o jornalismo, não de sarjeta, mas de ódio e de mentiras e falsidades, sem ser sujeito ao contraditório...
A construção da liberdade de expressão fez-se (quase) sempre contra os poderes: nos EUA, um dos processos marcantes, neste campo, é o caso New York Times Co. v. Sullivan (1964) em que o Supremo Tribunal veio estabelecer que as críticas a funcionários públicos (public oficials) só poderiam dar origem a indemnizações se os textos em causa fossem publicados com conhecimento da sua falsidade (actual malice) ou com um total desprezo pela verdade (reckless disregard for the truth). O processo surgira por críticas, com erros factuais, feitas num jornal a um responsável policial que levou os críticos a tribunal e, com base nas mentiras do texto que o criticava, conseguira obter uma indemnização de 500 mil dólares. Graças ao Supremo Tribunal, não recebeu nada.
Na Europa, no caso Oberschlick c. Áustria (1997), o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) considerou que a condenação, pelos tribunais austríacos, do jornalista Oberschlick pela utilização da palavra imbecil ou idiota (trottel) num texto em que criticava o político austríaco de direita Jorg Haider, violava a liberdade de expressão do jornalista. Para o TEDH, a expressão não era desproporcionada em relação à indignação que Haider conscientemente provocara ao afirmar que os soldados nazis tinham combatido pela paz e pela liberdade tal como os soldados aliados.
No nosso país, neste campo, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, em 2005, um acórdão essencial: a publicação em várias edições do PÚBLICO nos anos de 1997 e 1998 de uma investigação sobre a situação patrimonial do então empresário e dirigente socialista António Saleiro, levara a tribunal os jornalistas José António Cerejo, Carlos Dias e Eduardo Dâmaso. Condenados a pagar cerca de 20 mil euros ao político em causa por ofensa ao seu bom nome, os jornalistas foram absolvidos pelo STJ que considerou que a investigação tinha sido feita com seriedade e assentava em testemunhos em que os jornalistas puderam acreditar, não tendo agido de má fé.
Pode, assim, dizer-se que ser-se de esquerda ou de direita, pouco ou nada nos diz quanto ao entendimento que cada pessoa tem da liberdade de expressão, sobretudo se essa pessoa for a visada nos ataques expressivos. A dicotomia que melhor poderá caracterizar os dois campos será, talvez, a de conservadores e de liberais, na medida em que os primeiros valorizam mais a autoridade e o status quo e os segundos as liberdades e a autonomia individual.