No circo, como na vida, quem se fode é o de baixo
Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre, de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, é o primeiro grande momento em que a BoCa – Bienal de Artes Contemporâneas desafia criadores a moverem-se em disciplinas menos familiares.
Há dois anos, quando o director artístico da BoCa, John Romão, se sentou com os artistas plásticos João Pedro Vale (JPV) e Nuno Alexandre Ferreira (NAF) para lhes propor uma investida nas artes de palco teve como resposta imediata: “Aceitamos, mas o que queremos fazer é um circo e vai chamar-se Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre.” Se o conceito transdisciplinar da BoCa prevê deslocar artistas das suas zonas habituais de experimentação e desafiá-los a assumir linguagens que lhes sejam menos familiares e/ou confortáveis (também a cineasta Salomé Lamas e o artista urbano Vhils apresentarão obras criados para os palcos), a resposta pronta do tipo de espectáculo e com o título já pronto a seguir para a tipografia era, no mínimo, surpreendente. Acontece que Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre era um assunto pendente na vida dos dois, uma segunda aventura no cinema porno que tinha ficado por consumar.
Em 2009, então a viver em Nova Iorque, JPV e NAF rodaram o filme porno-gay Hero, Captain and Stranger, a partir de Moby Dick, o clássico de Herman Melville, estimulados pela imaginação do que seria a vida sexual dos tripulantes de um baleeiro, durante dois anos fechados no interior da embarcação e fatalmente entregues a relações sexuais com outros homens, independentemente da orientação sexual em terra firme. Por alguma razão (que aos próprios escapa) decidiram dar continuidade a essa aventura no cinema porno com a realização de um novo filme, deslocando o cenário e os protagonistas para o circo e os palhaços.
O filme acabou por nunca acontecer, mas a ideia ficou a fervilhar e foi a ela que se agarraram – já não como porno-gay mas enquanto imaginário total – no momento em que John Romão lançou o isco da BoCa. O circo permitia-lhes também fugir a uma sala convencional e a algo que, podendo reclamar as suas originalidades, seria sempre uma encenação teatral vista e interpretada dentro desse padrão específico. “Já que a proposta era fazermos um espectáculo enquanto artistas, então que pudesse ser entendido como um objecto artístico na totalidade”, justifica JPV, convocando para um mesmo objecto actores, performers, artistas de circo, músicos e proponentes a um open call para apresentação de números de habilidades. “Fazer um circo não nos dava mais segurança, mas não queríamos estar espartilhados pela ideia de fazer uma peça de teatro para o palco”, acrescenta NAF. “O circo dá-nos essa liberdade de o pensarmos e criarmos como uma instalação.”
Permite também que a natureza altamente sexualizada do trabalho da dupla se manifeste, desde logo, no chão da arena onde o espectáculo decorre – no Museu de Lisboa de 31 de Março a 2 de Abril, na Praça D. João I, Porto, a 7 e 8 de Abril. Após uma entrada em que a actriz Cláudia Jardim faz o acolhimento vestindo uma saia em que está reproduzida a tenda de circo para onde o público é encaminhado (estará a assistência, afinal, debaixo de umas saias gigantes?), o piso da arena é feito de uma ampliadíssima fotografia de um ânus. Ou seja, se o filme a partir de Moby Dick fora sobretudo um pretexto para fantasiar sobre a sexualidade de um grupo de homens dentro de um barco, com o circo interessava-lhes explorar um imaginário fortemente representado nas artes plásticas e no cinema, mas antes de mais investigar a vida colectiva destas “comunidades com regras específicas e que vivem à margem” e incrustarem nesse universo o seu próprio mundo.
“Ao contactarmos com os circos começámos a interessar-nos pelo facto de numa sociedade cada vez mais globalizada, em que os estilos de vida e os modos de convivência são cada vez mais homogéneos, ainda existirem estas pequenas comunidades que continuam a ser itinerantes”, dizem. Esse contacto com os circos, que não se limitou a assistirem a uma série deles em vários pontos do país, tinha também por objectivo conhecer as pessoas por detrás dos espectáculos, numa investigação em que tentavam apurar “qual a correspondência entre o imaginário que existe sobre o circo e a realidade” – uma realidade sempre filtrada, admitem, uma vez que nunca deixaram de ser forasteiros. “Eles próprios glamorizam muito a coisa”, reconhece NAF, “também estão imbuídos desse imaginário construído sobre si.”
Uma das dissonâncias óbvias entre imaginário e realidade é que todo o lado de freak show, de espectacularidade assente na excentricidade e em tudo o que fosse fora da norma – um interesse temático habitual na dupla e que ferve incólume na representação iconográfica do circo – se foi apagando com os anos em detrimento de uma versão mais anódina e familiar. Desapareceram os cães de duas cabeças, os homens com pénis capazes de levantar pesos incalculáveis, as mulheres barbadas ou pessoas com deformações físicas exibidas como animais de cativeiro.
Um rol de pistas
Toda essa herança do freak show foi usada pela dupla para se questionar o que significa hoje ser fora da norma. O afã capitalista faz com que “tudo seja integrado no sistema, segundo esta lógica economicista de aumentar o mercado e tudo passar a ser normal”, aponta Nuno Alexandre Ferreira, exemplificando com a generalização do casamento a todos os cidadãos. “Para mim, toda esta assimilação não passa de uma estratégica económica para ganhar consumidores. Desde que haja um grupo de potenciais consumidores, tudo é integrado na norma para que possa passar a gerar lucro.” Os dois recusam um lado afirmativo deste espectáculo, em que pretendem partir de uma interrogação e esgravatar mais fundo ou à sua volta, tentando sempre fugir à tentação de propor uma resposta no final. Até porque, com palhaços em cena, qualquer assomo de seriedade pode não resistir à primeira piada.
Embora os dois se divirtam a brincar com o nível de sugestão sexual que parece estar sempre presente num subtexto quase contínuo, há uma razão clara e objectiva para que o palhaço rico foda o palhaço pobre. Como diz João Pedro Vale, “em caso de dúvida, não interessa se o palhaço é gay, branco, preto, homem, mulher ou qualquer outra coisa – interessa se é rico ou pobre”. Ser parte de uma minoria, aqui, poderá representar o exacto oposto daquilo em que habitualmente pensamos quando pensamos em minorias – como sendo mais desprotegidas nos seus direitos e mais vulneráveis à grande ordem social. Aqui a minoria será dos privilegiados, que torce o sistema a seu bel-prazer e dele extrai todas as regras de que necessita para defender essa condição de excepção.
“Uma das cenas, chamada Ricos e Pobres”, exemplifica NAF, “fala da Isabel dos Santos, que não é mulher nem preta, é rica. Ou seja, todos os problemas associados com a condição feminina ou o racismo não se aplicam, porque acima de tudo ela é rica, a sua identidade é essa, ser filha do Presidente de Angola.” Mesmo no que toca à homossexualidade, “uma coisa é ser gay e rico e outra é ser gay e pobre”. Esse é um jogo a que se dedicam com recorrência, ironizando com a sua própria situação de “homens brancos, europeus, com estudos”, enquanto vão desfiando um conjunto de cenas que têm em comum uma assunção mais ou menos evidente de um tom de manifesto.
Inspirados, em primeiro lugar, pelas imagens de filmes como Freaks, de Tod Browning, e I Clowns, de Federico Fellini, foram também em busca de associações históricas, desde os combates entre gladiadores nos circos romanos ao universo do burlesco e do sado-masoquismo, buscando os pontos tangentes entre estes e o universo circense. Mas a presença do cinema sente-se também através outras referências que passam por vislumbres de Frank-N-Furter de Rocky Horror Picture Show, Divine nos filmes de John Waters ou a Baby Jane de Bette Davis em What Ever Happened to Baby Jane? A natureza fractal de referências não se fica por aí – as alusões ou citações de Klaus Nomi, Joseph Beuys, John Giorno, Marina Abramovic ou Paul B. Preciado alimentam várias camadas do espectáculo e a própria obra dos dois surge através da presença dos caretos e de um telão encomendado para a conferência de Judith Butler no Teatro Maria Matos, infiltrando-se neste quase infindável rol de pistas mais ou menos fáceis de seguir.
A tudo isto se junta a angústia de, nesta posição pela primeira vez, terem de lidar com a efemeridade da criação e a falta de controlo (que também buscaram) ao trabalharem com uma equipa tão alargada. “A falta de controlo é horrível”, admitem. Mas tiveram de assumir essa limitação a fim de não acabarem com uma sequência tão limpa que falharia qualquer objectivo de sujar e contaminar as ideias alheias.