Auditor alerta para "buraco" de 107 milhões na dona do Montepio

A KPMG alerta que a Associação Mutualista Montepio Geral, dona da Caixa Económica (banco Montepio), tem capitais próprios negativos e necessita de ser recapitalizada. Banco e seguradora contaminaram contas da mutualista.

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Tomás Correia (segundo a contar da direita) já saiu da Caixa Económica, mas continua à frente da Associação Mutualista Enric Vives-Rubio
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DANIEL ROCHA

O grupo Montepio Geral Associação Mutualista (AMMG) fechou as contas consolidadas do exercício de 2015 com capitais próprios negativos superiores a 107 milhões de euros, o que gera pressão sobre a Caixa Económica liderada por José Félix Morgado, a necessitar ela própria de reforçar os rácios de capital. 

Na certificação das contas consolidadas do grupo Montepio Geral, a auditora KPMG chama a atenção para o facto do Montepio Geral-Associação Mutualista apresentar a 31 de Dezembro de 2015 “um capital próprio negativo atribuível aos associados no montante de 107.529 milhares de euros [o passivo é superior ao activo]”, incluindo um resultado negativo imputado aos mutualistas de 251.445 milhares de euros.

O PÚBLICO teve acesso ao documento anexo às demonstrações financeiras do grupo Montepio, de 31 de Dezembro de 2015, e que foi distribuído a semana passada pelos 23 membros do Conselho Geral da AMMG, para que o possam debater na reunião desta terça-feira, 14 de Março, que vai decorrer durante a tarde. 

Nas suas apreciações, a KPMG deixa um forte alerta aos mutualistas de que a associação Montepio Geral enfrenta um quadro crítico, de falência técnica, com necessidades de uma injecção de fundos.

A consultora sugere a apresentação de um plano que restabeleça a situação de capital do grupo e garanta a continuidade da actividade das suas participadas. E há duas vias que se abrem: recorrer a capital por via externa ou através da venda de activos que possui em carteira.

É este quadro que pode explicar os atrasos na publicação das contas consolidadas de 2015 do Montepio Geral-Associação Mutualista que vão ter de ser aprovadas em reunião da assembleia-geral ainda sem data marcada. Assim como a expectativa de que a nova legislação sobre as entidades da economia social pudesse ser aprovada a tempo de evitar a publicação das contas.

Este cenário levanta dificuldades à recapitalização da Caixa Económica (banco) a necessitar de repor os rácios de capital. Isto, a acreditar num relatório do Banco de Portugal (BdP), referente a 2016, e que o Expresso divulgou na sua última edição. E onde se pode ler que o banco Montepio apresenta “um perfil de risco de nível elevado”, tem exposições estratégicas que “não garantem uma gestão sólida” e regista uma “consistente degradação da qualidade da carteira dos clientes. O relatório que o semanário diz ser “arrasador” para a gestão de Félix Morgado, forçou fonte oficial do Montepio a vir garantir que as falhas apuradas pelo supervisor bancário foram entretanto corrigidas e “tudo se encontra em conformidade”.

Dias antes, a 9 de Março, em entrevista ao PÚBLICO, Carlos Costa esclarecera que “a Caixa Económica [fiscalizada pelo BdP] está estabilizada e em processo de reformulação do modelo de governo” e que possui “uma administração profissionalizada e a dar passos sérios no sentido de se transformar num pilar financeiro do terceiro sector”. 

Observações que foram interpretadas como um sinal de apoio à equipa de Félix Morgado, um gestor da esfera do governador (os dois são amigos e trabalharam no BCP) que em 2015 o indicou para substituir Tomás Correia à frente do banco Caixa Económica. Félix Morgado é tido como muito próximo da Opus Dei, não alinhando com nenhuma das facções maçónicas que se enfrentam dentro do Montepio.

Uma das decisões que a equipa de Félix Morgado, onde está Luís Jesus, um quadro recrutado à KPMG, terá preparado para ajudar a Caixa Económica a criar capital é o negócio que envolve as minas de Aljustrel. Em causa esteve a criação de um veículo que permitiria a libertação de uma mais-valia, o que terá sido, no entanto, considerado ilegítimo pelo BdP.

Mas na sua entrevista ao PÚBLICO Carlos Costa fez outros comentários, também recebidos com perplexidade: “O que me preocupa não é que o accionista tenha problemas, é assegurar que o banco não está exposto ao accionista. Essa é que é a raiz do contágio. Se um accionista tiver dificuldades vende acções e a sua participação sem afectar o banco. Só afecta se ele também beneficiar do crédito. O crédito entre entidades relacionadas não pode ser aceite.” Uma observação que remete para o BES, que colapsou contaminado pelo GES (o banco era usado para financiar as empresas accionistas de referência e sem condições de ir ao mercado levantar fundos e de saldar as suas dívidas).

Só que, aparentemente, o que se passa no grupo Montepio é o inverso. É o banco, supervisionado pelo BdP, que se financia junto da Associação Mutualista, fiscalizada pelo Ministério da Segurança Social, o que pode ter criado dificuldades à entidade, com cerca de 630 mil associados. Todos eles clientes normais do banco. Muitos foram convidados a subscreverem produtos financeiros mutualistas, cujas aplicações, enquanto investimentos da Associação, regressavam ao banco sob forma de capital, de empréstimos obrigacionistas ou em depósitos.  

Com activos de 3,7 mil milhões de euros, a exposição da AMMG à Caixa Económica e às empresas do grupo ronda 87%: mil milhões em forma de empréstimos obrigacionistas e 2,3 mil milhões investidos em capital do banco e das participadas. Mas os 2,3 mil milhões estão valorizados no balanço por apenas 1,9 mil milhões, dado que 423 milhões são imparidades. Segundo as demonstrações financeiras da entidade, só ao banco a AMMG está exposta em mais de dois mil milhões (provisionados em 350 milhões), posição valorizada no balanço a 1,6 mil milhões: mais do que vale o BCP (cerca de mil milhões) ou o BPI (aproximadamente 1,3 mil milhões).

E é por isso que a acção do BdP pode estar novamente em causa. Apesar de em 2014 terem sido abertas averiguações à gestão de Tomás Correia, que acumulava as presidências do banco Caixa Económica e a da AMMG, e que acabaram na reavaliação da sua idoneidade. Processo que levou ao afastamento em 2015 de Tomás Correia do banco, mantendo-se, no entanto, o gestor na AMMG.

A dívida da Ongoing

Nos últimos anos, as poupanças dos mutualistas não serviram apenas para financiar o banco Montepio, foram também usadas para resolver problemas do designado “sistema GES/BES /Ongoing” que a crise financeira de 2008 pôs em evidência.

No final de 2008, o grupo tornou-se parceiro da Ongoing ao aplicar mais de 40 milhões de euros em veículos da empresa de Rafael Mora e Nuno Vasconcelos, com sede no Luxemburgo. O que Tomás Correia justificou com a necessidade de diversificar riscos. Mais tarde, o banqueiro emprestou outro tanto à Ongoing para que esta pagasse o investimento realizado e a dívida ao banco disparou para 70 milhões. Neste momento, o Montepio reclama apenas 15 milhões. 

A 19 de Julho de 2014, o PÚBLICO revelava que a exposição directa e indirecta do grupo Montepio às áreas financeira e não financeira do GES rondava os 200 milhões de euros. O risco estava na Caixa Económica, na Lusitânia e em fundos de investimento do grupo Montepio Geral. Parte da verba foi já recuperada, nomeadamente, pela execução de garantias reais.

Há outros movimentos igualmente controversos. A 21 de Julho de 2009, a Caixa Económica investiu 42,5 milhões na compra de 85% da Real Seguros, detida pela Sociedade Lusa de Negócios, a ex-dona do BPN, dos quais 35 milhões destinaram-se a aumentar o capital da seguradora. A operação ainda se reflecte nas contas da Lusitânia, que absorveu a Real Seguros, que acumulou nos últimos três anos prejuízos de 70 milhões de euros.  

Já em Julho de 2010, Tomás Correia tinha avançado com uma OPA de 341 milhões sobre o Finibanco. E que foi o culminar de uma negociação que começou ano e meio antes, quando as avaliações apontavam para menos 100 milhões de euros. Um acréscimo justificado com o facto de a transacção final incluir o Finibanco Angola. Esta transacção “salvou” os accionistas do Finibanco, a família Costa Leite/Vicaima e o Banif (que tinha na altura 10% do banco). 

Contas feitas: entre 2011 e 2015, o grupo mutualista encaixou mais de mil milhões de perdas consolidadas (Associação, banco, seguradora e outras sociedades). E, em 2015, pela primeira vez na sua história de 175 anos, a Associação Mutualista encerrou o exercício em terreno vermelho, ao revelar um prejuízo de 393 milhões de euros (depois de um lucro de 41,5 milhões em 2014). Em 2016, deverá voltar a terreno positivo para cerca de sete milhões. Já a Caixa Económica tem vindo a acumular perdas sucessivas, de 243,4 milhões de euros em 2015 e de 187 milhões em 2014. E a Lusitânia tem seguido a mesma tendência do banco.

Contactado, o grupo Montepio não respondeu às questões do PÚBLICO até à hora de fecho.

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