Mal-estar nos fundadores da União Europeia
No início do século XXI surgiu na Europa uma nova conjugação particular de circunstâncias. Só que desta vez não impulsiona a integração. Origina um profundo mal-estar que ameaça desintegrar a União Europeia.
1. Nada exemplifique melhor a perda de atracção da União Europeia do que a crescente contestação que lhe é movida nos Estados fundadores. Teoricamente, seria nestes que deveríamos encontrar o maior sentimento de europeísmo. Afinal, é aí que se encontram mais gerações já nascidas e crescidas após a formação das Comunidades nos anos 1950. Seria expectável uma crescente e enraizada identificação com a União Europeia. Mas não é isso que está a ocorrer. Dois casos merecem particular atenção: o da França e o da Holanda (poderíamos ainda juntar um terceiro, o caso da Itália, que não é aqui analisado). Neste ano de 2017, há importantes processos eleitorais em curso: na Holanda, as eleições legislativas que vão ocorrer já no próximo dia 15/3; em França, as eleições presidenciais de 23/4 (primeira volta) e 7/5 (segunda volta). A estas acrescem as eleições legislativas na Alemanha a 24/09. Nos casos francês e holandês, partidos e candidatos de perfil nacionalista e populista poderão ter votações importantes, hipoteticamente até chegando ao poder. Partes significativas do eleitorado estão em rota de colisão com os ideais da integração. Anteriormente, em 2005, em ambos, foi rejeitado em referendo o Tratado Constitucional Europeu. Como chegamos a esta situação, onde a maior realização europeia da segunda metade do século XX é fortemente contestada no núcleo fundador da União?
2. Uma imersão na Europa dos primórdios ajuda a compreender o problema. As Comunidades Europeias foram construídas em circunstâncias muito particulares da história europeia. A Europa estava largamente destruída pela II Guerra Mundial. No imediato, viu-se no meio de uma Guerra-Fria onde a União Soviética aparecia com inimigo temível face ao qual os europeus, sozinhos e divididos, não tinham capacidade de se opor. Os EUA estavam interessados em reconstruir e unificar a Europa, por razões simultaneamente económicas e políticas, a mais importante das quais era a contenção da expansão soviética. Neste contexto historicamente singular, as Comunidades combinavam ideais europeístas com interesses pragmáticos de europeus e norte-americanos. Fundamental era a reaproximação entre a França e a Alemanha, pondo fim a um secular e trágico antagonismo marcado por três guerras: a guerra franco-prussiana de 1870/1871, a I Guerra Mundial (1914-1918) e a II Guerra Mundial (1939-1945). Para a França, foi também uma forma de recuperar prestígio e influência política sobre a Europa. Para a Alemanha, ocupada militarmente, dividida entre o Ocidente e o Leste, e com um pesado ónus do nazismo, a integração europeia foi uma oportunidade única de rápida reabilitação. Esta combinação singular de ideais e interesses não existe na Europa de hoje.
3. O que mudou desde então? Começando pelo óbvio. A França já não lidera a União Europeia. A sua liderança era clara e sem rival nas primeiras décadas de integração. A Alemanha estava em baixo, tal como a Itália. Os Estados do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo) são demasiado pequenos para terem qualquer possibilidade real de liderarem o processo. Assim, o europeísmo que se criou e enraizou em França foi fundamentalmente um europeísmo instrumental, de uma Europa à francesa. As Comunidades / União Europeia eram um multiplicador do poder nacional. A França liderava e tinha atrás de si mais cinco Estados. O general de Gaulle protagonizou soberbamente essa estratégia. A sua acção política, inequivocamente assente na preservação da soberania do Estado-nação, foi hábil na instrumentalização do europeísmo. Quando necessário, não deixava de o confrontar abertamente. Numa célebre conferência de imprensa de 1962, a propósito do fracasso do Plano Fouchet, o qual visava promover uma união política, de Gaulle atacou as teses supranacionais (e atlantistas), para defender uma Europa das nações. Em 1965/1966, esteve na origem da maior crise política das Comunidades: a “crise da cadeira vazia” (chamou a Paris a sua representação permanente em Bruxelas, abandonado as instituições europeias). Opôs-se à proposta da Comissão de recursos próprios para as Comunidades e a mais poderes orçamentais para o Parlamento Europeu. Recusou a entrada em vigor da votação por maioria qualificada no Conselho. Hoje seria improvável, ou mesmo impossível, a França exercer similar pressão sobre a União Europeia.
4. Na Holanda o mal-estar face à União é também muito evidente. Tem múltiplas causas. Algumas são diferentes da França (na Holanda não há o ressentimento da perda da liderança europeia, porque nunca a teve). Outras intersectam-se com o mal-estar francês, como o ressentimento de parte crescente da população face aos fluxos migratórios de massa. Tradicionalmente, a Holanda é um país liberal nos costumes e aberto ao mundo, especialmente no comércio. Nos primeiros tempos das Comunidades, a memória da II Guerra Mundial era forte. O reentendimento entre dois vizinhos poderosos era bom para a Holanda. A sua geopolítica (tal como a da Bélgica) — ambas configuram os Países Baixos —, não é a da Suíça, protegida pelas montanhas dos Alpes. A geografia tornou a neutralidade impossível face ao conflito franco-alemão. Para além disso, a Alemanha e a França eram um destino natural do comércio holandês, o que tornava um mercado comum muito atractivo. A evolução das últimas décadas — especialmente a globalização e os fluxos migratórios de massas —, dissiparam parte do atractivo. Tal como a França e outros Estados prósperos da União Europeia, passou a atrair população migrante, na grande maioria extra-europeia e muçulmana (no seu caso de Marrocos, Turquia e Indonésia). Esta população, que já vai na segunda ou terceira geração, continua com grande dinamismo demográfico. Ao mesmo tempo, dá poucos sinais de absorver os valores holandeses e a adoptar a sua cultura, tradicionalmente impregnada de uma ética protestante e liberal. Mas há outra causa maior. A Holanda é um contribuinte líquido para o orçamento da União Europeia, com um dos valores mais elevados em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). O facto de a União Europeia ser vista como potenciadora de fluxos migratórios de massas indesejados, sem grandes vantagens numa globalização de mercados abertos, e um encargo para o contribuinte holandês, alimenta um crescente revivalismo nacional.
5. Para além do já apontado, há passos em falso na construção europeia com grandes responsabilidades no mal-estar junto do núcleo fundador, e em vários outros Estados da União. Alimentam a ascensão do populismo e do nacionalismo, nas suas diferentes formas. Tentar impor a adesão da Turquia contra a vontade da opinião pública foi um desses passos em falso. A decisão de abertura negociações em 2004, ignorando a forte contestação à adesão em vários Estados, especialmente naqueles onde a Turquia era bem conhecida pelas rivalidades históricas (Áustria e França) e / ou por uma forte população migrante pouco integrada (Alemanha, Holanda e Bélgica), falhou completamente nos seus objectivos. As consequências estão a tornar-se muito visíveis. A Turquia tornou-se um problema crónico para a União Europeia. Está a caminhar para uma autocracia, fazendo tábua rasa dos valores democráticos e pluralistas. Pior, num ambiente de tensões internacionais com o Islão alimenta a engrenagem do populismo e do nacionalismo no interior da União. A recente confrontação diplomática entre a Holanda e a Turquia — com o governo holandês a negar acesso ao seu território aos ministros turcos que iam fazer campanha para alargar o poder presidencial de Recep Tayyip Erdogan — mostra o problema. A agressiva reacção do governo da Turquia acusando a Holanda de ter "resquícios do nazismo" e de ser uma "república das bananas", pode alimentar, ainda mais, os partidos populistas e nacionalistas. Geert Wilders e o Partido para a Liberdade (PVV) não podiam ter melhor impulso nas vésperas das eleições de 15/3.
6. A União Europeia parece uma construção cada vez mais frágil. Enquanto os ideais europeus e os interesses nacionais convergiram, a União Europeia funcionou bem. Era vista generalizadamente como garantia de bem-estar e segurança. Mas nas actuais circunstâncias da Europa e do mundo isso não ocorre, ou ocorre cada vez com mais dificuldade. Assim, a imagem de bem-estar e segurança dissipa-se. A integração está a abrir brechas no seu próprio núcleo fundador. Os casos da Holanda e da França exemplificam a transformação. Nesta última, o sentimento anti-europeísta tem um potencial enorme de impacto sobre a União. Para muitos franceses, a União já não serve, ou serve mal, o seu interesse nacional e bem-estar (o mesmo sentimento instalou-se noutros Estados, por razões variadas). Quer a reunificação alemã de 1990, quer os múltiplos alargamentos em espaços muito curtos — ao qual acresceu a possibilidade de adesão da Turquia —, quer a criação do Euro, desequilibraram a União. Especialmente após a crise financeira de 2008, o Euro tornou a Alemanha líder, secundarizando a França. Transformou o seu poder económico em poder político, de uma forma que nunca tinha existido. Os Estados do Sul, especialmente a Grécia, ficaram um quase protectorado germânico, devido ao endividamento. (No futuro, a saída britânica da União vai acentuar, ainda mais, a hegemonia alemã.) Quanto ao resto do mal-estar, foi criado pelas migrações em massa, crise dos refugiados e terrorismo islamista. No passado, as circunstâncias muito particulares da Europa e do mundo dos anos 1940 e 1950 impulsionaram decisivamente a integração europeia. No início do século XXI surgiu uma nova conjugação particular de circunstâncias. Só que desta vez não impulsiona a integração. Origina um profundo mal-estar que ameaça desintegrar a União Europeia.