A rã que come a lesma que come a couve
Os números confirmam: a agricultura biológica atrai cada vez mais pessoas. Mas na Quinta dos Sete Nomes está-se “um passo à frente”. Ali, produz-se em permacultura e o objectivo é “fechar ciclos de auto-suficiência”. Mas ninguém quer viver numa bolha. Há uma rede com vários fios. Fomos segui-los.
Quem olha, dificilmente adivinha. Onde agora estão hortas a prepararem-se para acolher as culturas do Verão, havia só mato e entulho – “uma fatia de deserto”. O lixo ia até ao rio das Maçãs, que corre ao fundo da quinta. Mas agora o que vemos é o resultado de uma ideia que germinou, cresceu e está a dar frutos. Frutos biológicos.
Claramente escolhemos a estação errada para fazer esta reportagem. Fosse o aniversário do PÚBLICO em Junho ou Julho e encontraríamos a horta farta na Quinta dos Sete Nomes, em Colares (Sintra). Ainda assim, há favas floridas, ressuscitadas da geada que caiu há três semanas, couves, alfaces ainda pequeninas, alho francês...
Já lá vão quase duas décadas. Sete pessoas vindas de várias áreas – da Filosofia, como Isabel Castanheira, uma das principais mentoras do projecto, à geologia ou à construção civil – juntaram-se para formar uma cooperativa e aplicar uma ideia que vinha crescendo há tempo: desenvolver uma quinta com produção própria, biológica, com uma loja e um centro de formação em sustentabilidade. “A vontade de levar as pessoas à terra foi o que me moveu desde o início”, diz Isabel Castanheira.
A experiência começou aqui perto, na Quinta dos Camareiros, em Galamares, em 2000. Para além da produção hortícola e frutícola, montou-se uma loja com produtos como arroz integral, bebidas de cereais, bolachas biológicas.... e caixa aberta, ou seja, ninguém a controlar os pagamentos. “Foi fundamental para criar laços de confiança.” Em 2006 o grupo era já de 50 pessoas. O passo seguinte foi formar a cooperativa. Depois, procurar outro espaço. E foi assim que apareceu esta quinta, “já com energia, um poço, o rio das Maçãs e uma óptima localização. Tinha tido produção [agrícola] convencional e estava há quatro anos abandonada". Um donativo de 2500 euros de uma das sócias bastou para o arranque. Inauguraram em 2007.
Mas este é um projecto em construção permanente. Todo o dinheiro ganho é reaplicado e agora há já um lago, uma eco-construção, eco-sanitários, com duas casas-de-banho secas, eco-camping, espaço café (por onde passam refeições sem glúten, sem lactose, sem açúcar, e tudo biológico), um telheiro com um forno de lenha onde o António está agora a descascar batata-doce para o pão que depois amassará pacientemente (ele próprio produz a batata-doce; tal como o milho que usa noutro pão), uma estufa, uma carpintaria. Há noites longas de cinema, manhãs de yoga com brunch, tardes inteiras de oficinas em diferentes áreas (cosmética florestal, apicultura, construção com sacos de terra, composto, hortas...) Recebem escolas, dão estágios a alunos.
Chamar-lhe produção de agricultura biológica não chega. Aqui faz-se permacultura. “A agricultura biológica é uma técnica de cultivo limpo [sem químicos]. A permacultura está um passo à frente.” O lema é “cuidar das pessoas, cuidar dos animais, cuidar da terra, repartir sementes”, exclusivamente biológicas e preferencialmente locais.
A conversa é interrompida pela Ana, uma estagiária, que pergunta “como é a receita das galinhas?” “Coentros, gengibre, funcho, alho, tudo misturado com arroz cozido.” Não, não é uma refeição, é uma mezinha para curar a constipação das aves, que estão aqui para dar ovos e enriquecer a terra.
“A agricultura biológica usa preparados orgânicos e naturais, a permacultura faz isso com o equilíbrio das populações – chama os predadores das pragas” para acabar com elas. Daí o lago. Com cerca de 400 metros quadrados, acolhe rãs que comem as lesmas que comem as hortícolas. Também tem peixes, que se alimentam de ovos de insectos. Protege-se assim a produção, de forma natural.
“Neste momento está equilibrado”, orgulha-se Isabel Castanheira. “Não é lançando a joaninha que se resolve o problema; é plantando capuchinhos que atraem as joaninhas”, diz, num resumo possível de uma das diferenças entre agricultura biológica e permacultura.
Por todo o lado há ervas aromáticas. No meio de cebolas, couves, alfaces, há sálvia, alecrim, tomilho, milfólio. “Uma acção deve ter várias aplicações. É o caso das aromáticas: defendem a horta das pragas [porque atraem abelhas que comem alguns insectos], equilibram os solos [o milfólio, por exemplo, liberta potássio], e cria-se uma linha de chás.” “A permacultura já vinha ao encontro das linhas do nosso projecto: com uma dimensão local, vocacionada para evitar a erosão e para a construção do solo (a movimentação continuada da terra – praticada também pela agricultura biológica – é responsável pela erosão). Em permacultura fazemos cobertura com vegetação [folhas, palha, ervas secas, agora algas], para proteger e construir solo e reduzir a evaporação”, o que também diminui a utilização dos recursos hídricos.
“O grande objectivo é fechar ciclos de auto-suficiência e estabilidade”, continua Isabel Castanheira. “Mas a auto-suficiência não pode implicar um fecho em bolha. Temos de nos ligar às redes locais que estão à nossa volta.”
Nasce tudo o que tem a nascer
Vamos então seguir alguns fios dessa rede. Vamos até Arneiro dos Marinheiros (também na zona de Sintra) conhecer José Baleia Duarte, 73 anos, que fornece a palha à Quinta dos Sete Nomes. Quando lá chegamos, o seu filho, Américo está a dar comida aos cães, seus companheiros de caça. Onde antigamente se pisava uva para o vinho de Colares (ainda lá está um enorme túnel), agora é um armazém com palha até ao tecto. “São os fardos da Isabel. Estão aqui à mão porque é sempre para ontem! Vão sempre 20 de cada vez”, afirma Américo. O pai, de olhos tão azuis como o boné, completa: “Cheguei a distribuir centenas de fardos de trigo por Almoçageme, Azóia, Malveira da Serra...”
Agora há pouca gente a pedir. Mas são ideais para a cooperativa porque naqueles campos de cevada e trigo não entram químicos – apenas porque não justifica o preço que custam, dizem os produtores. “A erva nasce, e nasce tudo o que tem a nascer”, afirma Américo.
Damos um pulinho até à Pernigem, onde ficam estes dois hectares bem semeados, com as plantas já a uns oito centímetros do chão (“agora dá para pisar, que ele levanta, mais crescido é que não”), e a linha da serra bem desenhada à frente, com o Palácio da Pena à esquerda.
Por volta de Outubro, José Baleia Duarte pega no tractor Ford que em Agosto completará 50 anos e faz regos no campo: “Isso mata 70 ou 80% das ervas [daninhas]. O chão fica preparado para o Inverno, fica à espera”. Em Dezembro ou Janeiro semeia-se o trigo – “sementes minhas, seleccionadas por mim”; lá para Fevereiro, a cevada. Só em finais de Julho é que haverá palha – no ano passado, foram mais de 600 fardos, cada um com menos de 20 quilos. Os cereais serão para vender e para alimentar os animais que tem ao lado de casa: uma vaca leiteira “fora de série”, já com 15 anos, e que dá o leite para os queijos frescos que ali fazem, e um boi de 14 meses e já 250 quilos.
A vida de Américo levou-o para uma empresa de caixilharias em alumínio, mas aos 38 anos, o seu sonho era fazer só isto, dedicar-se à terra. “Tenho paixão pela agricultura”.
Jorge Gaspar partilha a mesma paixão e decidiu dedicar-se a ela a 100 por cento. Alfaces, alho francês, beterraba, pepino, courgetes, pimentos, abóboras, batata-doce, dez toneladas de batata-doce só no ano passado. Umas de polpa laranja, outra roxa, mas sobretudo a variedade algarvia. É um dos grandes fornecedores da Quinta dos Sete Nomes.
O pai foi peixeiro e desistiu para se dedicar à agricultura. Ele foi directamente para a terra. “Faço uso das ferramentas dele, do tractor”, e de alguns conhecimentos que vieram com a experiência, afirma este homem alto e encorpado e de fala serena. Mas ao contrário do pai, quando aos 24 anos começou a sua actividade, em terrenos que alugou, Jorge Gaspar decidiu produzir tudo sem químicos. Não foi complicado: “Temos um regulamento que não é assim tão difícil de cumprir, e há engenheiros que podem ajudar”, afirma.
“A alimentação é muito importante”, adianta. “Já é do conhecimento do público, a agricultura biológica tem muitos benefícios. Também exige muito tempo e esforço.” Ontem esteve a trabalhar das 7h30 da manhã até ao pôr do sol. “Varia muito, não é sempre assim.” Quando é preciso vêm duas pessoas ajudá-lo. Agora não, porque está “na fase do investimento” (estrume, plantas, reparação de máquinas). Isabel Castanheira acompanhou-nos. Os dois comentam como não se dá pelo tempo passar quando se está com as mãos na terra. “O tempo passa mais rápido que a velocidade do som”, diz Jorge Gaspar. “Trabalhar com a terra é estar continuamente a carregar energia”, diz Isabel. Depois, discutem a produção de tomate.
– É difícil, por causa das pragas e dos fungos, por isso não compensa tanto fazer – diz o agricultor. Enxofre, aconselha Isabel. É o fungicida dos biológicos. O enxofre seca a humidade ao sublimar. Temos conseguido, mesmo tendo índices de humidade altíssimos. E preparado de cavalinha. As plantas não têm doenças, têm carências e fungos. É preciso um solo equilibrado e actuar preventivamente.
– Um anel de cobre à volta da planta resolve o problema dos fungos.
Agora, o que se está a vender mesmo muito bem é a beterraba. “Está a ser apresentada como anti-cancerígeno, e é bom para a anemia. É como a batata-doce: vendia-se uma ninharia e hoje as pessoas estão a substituir a batata normal”, diz o agricultor.
No dia em que falámos, Jorge Gaspar tinha feito entregas dos restos da sua produção de abóboras, “um bocadinho de batata-doce que tenho guardada, daquela pequenina”, e de nabos.
– Ele é um produtor de alta qualidade, elogia Isabel.
– Procuro fazer o meu melhor. Mas dou crédito a ter terrenos bons, com características diferentes para produtos diferentes. Há culturas, como as couves ou o grupo das solanáceas [como o tomate] que exigem mais rotação.
– As alfaces não inquinam o solo e não há necessidade de muita rotação. Mas o melão, no ano seguinte não podes fazer. Produz um fungo de solo que corta os calos das plantinhas todas.
Portugal podia fazer tudo em biológico
A experiência diz a Isabel Castanheira que nos últimos anos o número de pessoas a fazer agricultura biológica tem vindo a aumentar (os números da permacultura não existem sequer). Jaime Ferreira, presidente da Agrobio (Associação Portuguesa de Agricultura Biológica) confirma. Existem actualmente 4300 operadores, e destes 3800 são agricultores (os restantes dedicam-se às outras actividades, como transformação). Se traçarmos uma curva, desde a década de 1990 que ela não pára de subir de forma constante, mas acentuou-se em 2002, teve uma ligeira descida em 2004-2006 (devido a redução de apoios). Depois, houve um pico em 2014-2015.
A maior parte dos terrenos em agricultura biológica – 82% do total – concentram-se na Beira Interior e no Alentejo, onde estão também as maiores explorações (que captam a maior parte dos fundos destinados ao sector), afirma Jaime Ferreira. Quer isto dizer que é nesta zona que mais se produz os legumes e frutas sem químicos que vão parar às nossas mesas? Não necessariamente. “Do total das áreas cultivadas, 80% são pastagens, forragens e cereais, ou seja, destinados a animais e não a humanos”, adianta. Significa então que há uma grande oferta de carne biológica no mercado? Também não. Como os fundos comunitários são maiores para pastagens em agricultura biológica, esta é a opção de muitos produtores, mas nada obriga a que depois os animais estejam em agricultura biológica também (a segunda metade da sua vida é passada a comer ração não biológica). Os fundos, adianta o responsável da Agrobio, “deviam estar ligados à colocação de alimentos bio no mercado. Mas só 20% dos apoios são para frutas e legumes, que é o que os portugueses procuram mais”.
Os recém chegados à agricultura biológica são sobretudo jovens desempregados, ou desiludidos com a sua actividade profissional. Este “talvez seja dos sectores que oferecem mais oportunidades futuras”, comenta Jaime Ferreira. “A procura é o dobro da oferta. Só 20% do que se encontra numa loja é nacional, talvez menos do que isso”. No entanto, Portugal tem condições para “produzir tudo em biológico – excepto as produções que não têm a ver com o nosso clima”. Seria uma questão de tratar dos solos – “a grande maioria precisa de melhorias, com adubações verdes, para aumentar a fertilidade”. E seria viável fazê-lo em permacultura? “Só tenho dúvidas sobre a abundância para chegar ao mercado. São sistemas mais direccionados para o auto-consumo ou para uma comunidade.”
Ao mesmo tempo, não há dúvidas sobre isto: “As produções locais vão ganhar terreno, à semelhança do que era há 50 anos. A agricultura biológica não é uma moda, veio para ficar”.
Que o diga Ana Gambão. Nasceu há 42 anos em Moçambique, no meio de uma família que é dos Açores, e cresceu na Parede. Estudou contrabaixo, depois escultura. “Mas precisava de uma coisa que me enraízasse”, diz. Depois da engenharia agro-pecuária, encontrou a resposta num curso de agricultura biodinâmica, em que as posições dos astros influenciam a intervenção que é feita na terra ou junto dos animais. Um exemplo? “Nas abelhas, nunca intervir quando a lua está à frente das constelações de água.” Também há períodos para fazer conservas (lua decrescente). É uma série de regras que exigem um equilíbrio nem sempre fácil de conseguir, levando a que muitas das tarefas se concentrem no mesmo dia, que pode nem sequer ser útil caso as condições meteorológicas não sejam favoráveis.
No Fundão, Ana Gambão e o marido plantaram árvores de fruto, castanheiros, nogueiras, cerejeiras, ameixieiras, e montaram uma melaria. Ele passa lá parte da semana, enquanto Ana Gambão se dedica ao terreno que alugaram na Quinta do Pé da Serra (Almoçageme). O terreno estava abandonado, incluindo as estufas, das quais ficaram os esqueletos.
Porque não produzir em permacultura? “Estou certificada em agricultura biológica. Não ponho rótulos, gosto de fazer as coisas que funcionam.” Às vezes podemos chamar-lhe permacultura, outras não.
Há muito espaço para hortas, que já têm vários pés de alface, acelgas, couve pak-choi, bróculos, aipo. Vai plantar abacateiros aqui e limoeiros acolá. “Queria fazer mais fruta, que é o que ninguém tem, porque as árvores, só passados cinco anos começam a produzir um bocadinho.”
Vende para vários restaurantes, para a Miosótis e para a Dietimport (que detém a marca Celeiro), sobretudo cerejas, “que é o que tenho em quantidade suficiente. Mas no ano passado foi terrível: deu 5% do habitual”. Os seus produtos, incluindo os que vêm do Fundão, também vão frequentemente parar à loja da cooperativa.
As hortícolas são os produtos mais abundantes no mercado, confirma o responsável da Agrobio. Nas frutas, a maçã reina, mas “a nacional só dá para garantir 3 ou 4 meses” de consumo, adianta Jaime Ferreira. “Faltam variedades regionais. Falta também uva de mesa, pêssegos, pêras que não a rocha, ameixas... E pelo contrário, “o mercado dos frutos vermelhos está esgotado”. Esse e o dos cogumelos shitake: “Houve 500 projectos aprovados no Norte”.
Nove meses de sono
Joana Oliveira não vive no Norte mas também desenvolveu uma empresa de produção de cogumelos shitake, a Mush Mush. É mestre em Farmácia mas em 2014 tirou um curso na Quadrante Natural, em Lisboa, e a sua vida mudou. Aos 35 anos, dedica-se agora a tempo inteiro à quinta que tem na Eugaria, onde planta amoras biológicas (só entre Julho e Novembro é que dá fruta), e ao centro de produção de cogumelos na pequena aldeia de Casas Novas (ambas na zona de Colares). É lá que vamos.
Passamos o pequeno portão castanho de ferro e descemos até ver dois armazéns. Lá dentro estão dezenas e dezenas de troncos de eucalipto com um metro de cumprimento, em cima uns dos outros, formando pilhas cúbicas perfeitas e ordenadas. Sente-se um ligeiro aroma a cogumelos.
O processo começa num anexo ao lado, onde cada tronco é primeiro colocado em cima de uma mesa para ser perfurado a toda a volta com buracos de seis centímetros (a broca vem do Japão porque tem uma rosca na ponta para aderir mais facilmente à madeira). Depois, faz-se a inoculação colocando lá dentro a cavilha já esterilizada e impregnada com o micélio – a semente do cogumelo. Aqui, usam-se os shitake donko (mais escuro e carnudo) e o shitake koshin (mais claro e magro). Elabora-se de seguida um “bilhete de identidade”: espécie, fornecedor, lote e numeração. O tronco segue então para a estufa de incubação, onde o micélio se desenvolve no seu interior (o shitake é uma espécie consumidora de madeira, que tem os seus gostos preferenciais; o eucalipto é um deles, e sendo infestante é um favor que se faz ao ambiente ser usado para este efeito, ressalva a produtora).
Os troncos que agora vemos foram colocados no Verão. Ficam neste “sono” de nove ou dez meses até o micélio crescer. A certa altura, a superfície do tronco começa a enviar sinais: aparecem bolhinhas, fica mais esponjosa. É nesta altura que se dá um choque térmico. As pilhas são colocadas dentro de uma gaiola que é submersa em água gelada (o tanque, que fica à porta, dá para duas toneladas de cada vez e daqui sairão meia dúzia de quilos de cogumelos). “O micélio é como algodão doce. E à medida que cresce cria bolsas de ar. O choque térmico vai levar a água a ocupar o lugar do ar”, explica Joana Oliveira.
São muito poucos os produtores que em Portugal fazem este banho, que faz parte do “processo tradicional japonês”, comenta (em vez disso optam por regar intensivamente os troncos, dispensando deslocá-los). “Este é um método milenar e tem muitas vantagens. Dá mais cogumelos, mais rijos e com mais paladar”.
Depois de dois ou três dias de imersão, os troncos seguem para o armazém, onde são dispostos num suporte, um a um. Dois dias depois, se estiver calor, os cogumelos despontam. Se for Outubro ou Novembro, será preciso esperar uma semana para os ver aparecer. Cuidado com os caracóis e as lesmas, que os adoram tanto como os humanos. Depois de retirados os cogumelos, o tronco segue para a pilha para um descanso de quatro ou cinco meses até novo mergulho. “Cada tronco dá dez frutificações no seu tempo de vida.” Quando deixa de servir, é vendido para biomassa. “Quero que todo o processo seja sustentável.”
Vender tempo
Na Quinta dos Sete Nomes, há dois escaparates com saquinhos de sementes organizados por ordem alfabética. Acelgas... alfaces... nabos... rábanos... tomate coração de boi... “O ideal é serem [provenientes] de um clima semelhante. Cerca de 90% são nossas ou de trocas com produtores da zona. Este é o primeiro ciclo, e está praticamente fechado. Somos quase auto-suficientes.” Mas mais uma vez, trabalha-se em rede, porque “é preciso diversidade genética”.
Há uma pequena estufa para se fazer sementeira (o tomate e as beterrabas já estão a despontar). Mas se for preciso também há a BioBrotar. Para além de vender sementes biológicas, vende tempo aos produtores. Isto é, vende as plantas já com alguns centímetros de altura para que o agricultor não tenha de esperar pelo tempo que leva o processo inicial: semear em tabuleiro e garantir a germinação antes de passar para a terra.
Poderíamos atravessar a aldeia de Póvoa de Cima (Mafra) e não dar pelos dois conjuntos de estufas que ocupam quatro mil metros quadrados de terreno. Para lá chegar, passa-se por um enorme pomar de limões. Ao fundo vê-se o convento, em baixo um lago que antigamente terá ajudado a regar as plantações, mas aqui só entra a água do furo, bem analisada. A BioBrotar é uma empresa familiar que juntou os dois irmãos Pedro e Nelson, e a mulher de Nelson, Ivone. O terreno era do pai deles. “Só começámos a fazer plantas em 2013”, conta Nelson Silva. “A agricultura biológica já tinha procura mas não tanta como hoje.”
Tudo tem de ser pensado ao pormenor. Por exemplo, e começando pelo princípio, os tabuleiros onde se semeia. “Não são de esferovite, são de um plástico branco resistente, que dura uns seis ou sete anos, e são mais fiáveis em termos sanitários”, explica. “Em agricultura biológica tudo tem de ser pensado para reduzir os problemas. Baseia-se na prevenção e na fertilidade dos solos.”
As sementes vêm de empresas estrangeiras certificadas, para haver a certeza de que são biológicas, sem tratamento e não geneticamente modificadas. “Conseguimos variedades tradicionais, mas não de cá. Os franceses também têm tomate coração de boi”, exemplifica. Para recorrer a uma semente local é preciso ter a certeza que a produção sempre foi em biológico, o que não é fácil.
Ao lado das estufas há um armazém onde uma máquina faz o primeiro trabalho. À mão, enchem-se os alvéolos dos tabuleiros de composto, mas depois é a máquina que abre espaço no alvéolo, coloca a semente através de um tubinho, acrescenta uma argila especial que retém humidade e garante arejamento, faz a primeira rega. De seguida, o tabuleiro vai para uma câmara de germinação com temperatura regulada entre os 20 e os 22 graus se forem couves e alfaces, por exemplo, e os 24 e 25 graus se for tomate (no primeiro caso, leva um dia a germinar, no segundo quatro). Há uma pluviosidade espaçada para garantir a humidade. Um clima tropical.
Depois de germinar, a planta vai para a estufa. Algumas plantas aromáticas foram espalhadas ao longo do espaço. Usam também uns frasquinhos com insectos que vêm em larva ou pupa para controlar os afídios (piolhos das plantas).
Há áreas grandes de cebolas e alhos (“como demoram muito a fazer-se fazemos logo lotes maiores”), outras menores com couves, alcachofras, abóbora, feijão verde, beringela, beterraba, tomate... É um mundo de biodiversidade. “No convencional podem ter só três ou quatro variedades a ocupar uma área destas, trabalham com lotes muito maiores. Nós temos umas 50. Em agricultura biológica há muita rotação de culturas e o grosso das produções é pequena. Isso obriga-nos a ter mais variedade e mais oferta.” Dá mais trabalho, é certo, mas “com mais biodiversidade correm-se menos riscos caso haja algum azar.”
A rega, mecanizada, vai espalhando uma chuva miudinha. É ver crescer. “A partir das três folhas verdadeiras [as primeiras que aparecem após a germinação são "falsas"] é vendida ao produtor.” Isto se não forem curcubitácias (melão, meloa, melancia...) que com duas folhas fica pronta a sair e conhecer a nova casa.
Minhocas na banheira
De volta à cooperativa. Vários sócios têm o seu próprio talhão, de produção a uma escala caseira. Aqui o da Francisca, além o do João, ali o da Susana. Um casal luxemburguês irá agora estrear um de plantas tintureiras. A quinta também é um laboratório.
Vários vendem na loja os seus produtos: o mel e as compotas do Luís, as hortícolas do Jorge, o pão do António... E a área de venda a granel tem vindo a ganhar espaço: não só de farinhas, arroz, açúcar, grão ou feijão, como de detergentes. “Cada um traz a sua vasilha. Sai muito mais barato e evitam-se as embalagens. Reutilizamos ao máximo.”
Foi dito e repetido que o solo é uma parte fundamental do processo. É por isso que uma banheira recebe agora restos de verduras, frutos, folhas... que com ajuda das minhocas vermelhas fazem o composto. Alguns baldes recolhem o húmus líquido que vai sendo produzido, “que é um fertilizante riquíssimo e muito equilibrado”, adianta Isabel Castanheira. Produzem três tipos diferentes de composto, uns mais demorados do que outros. O Bacon também dá uma ajuda. É o porco que, para além de brincar com as crianças, garante o estrume. “Este é outro ciclo que está fechado. Somos auto-suficientes em material para terra”.
Não se espere chegar à Quinta dos Sete Nomes e ver um plano bem delineado, com filas certinhas disto ou daquilo. Há todo um desenho de curvas e ondulações que permite aproveitar os recursos. Está virada a sul, para tirar todo o partido da exposição solar, e o terreno foi modelado de forma a não desperdiçar as águas da chuva, com barreiras que dirigem o curso da água para a horta, acabando no lago. “Potenciamos a recuperação dos lençóis freáticos”, orgulha-se Isabel Castanheira. E pelo caminho resolveu-se também a questão do carreiro que passava o tempo a alagar, deixando tudo enlameado. “Um problema não é um problema, é uma solução.” E este é outro resumo possível do que é a permacultura.
Também se construiu a pensar nos factores adversos, como o vento, por exemplo, que chega a ser responsável por perdas de 40% da produção. Daí os amieiros, as casuarinas, várias árvores de fruto. Estas últimas servem ainda para amparar o crescimento de feijoeiros, que as usam para se enrolarem à sua volta – no ano seguinte, as sementes que entretanto caíram fazem o seu trabalho e assim a intervenção humana começa a ser dispensada. “Há acelgas que já nascem em tufos por si. As árvores criam espaços de sol e sombra e equilibram o ecossistema.”
Aproximamo-nos do rio e ficamos a ouvir a água e a apreciar uma imponente nogueira, já antiga, que foi recuperada com tabaco crescido na quinta. Tem um ninho de madeira para atrair os chapins azuis (que gostam muito da processionária do pinheiro e dos bichos da fruta). Fingimos que está um magnífico dia de Verão e que se não fosse o trabalho até dava para um mergulho, acompanhando o pato selvagem que está todo contente na água. Nada a temer. De vez em quando aparecem por aqui alfaiates, e isso é um sinal de que a água está limpa.