Autoridades devem reverter construção do Museu Judaico de Lisboa
Prepara-se para Alfama uma das piores intervenções da Lisboa do século XXI, aquela que impõe o que as pessoas não desejam.
A concretizar-se a sua construção em pleno largo de S. Miguel em Alfama, o edifício destinado ao Museu Judaico desferirá um golpe trágico e irreversível no tecido urbano de um dos mais genuínos bairros de Lisboa. Um projecto em toda a linha dissonante da envolvente. Funcionará como um “exo-edificio” em conflito permanente com os pequenos prédios de cariz popular que povoam o Largo e com a magnífica igreja de São Miguel, imóvel de interesse público.
Não se trata de forma nenhuma de criticar a criação de um museu dedicado às comunidades judaicas que sempre fizeram e fazem parte da história e do desenvolvimento de Portugal, museu que há muito é devido e que será um novo pólo cultural de inegáveis valor e oportunidade.
O mesmo, contudo, não se poderá dizer da localização escolhida nem da linguagem e programa arquitectónicos propostos. Esses sim passíveis de crítica. Pretende-se intervir numa área ocupada antes por edifícios habitacionais propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, substituindo-os por construção nova de linhas contemporâneas com grandes panos de fachada cegos num programa em tudo alheio ao tecido urbano pré-existente. E tudo aprovado sem os devidos debates e análise de alternativas.
Mas para que tal não acontecesse seria preciso que as instâncias chamadas a dar o seu parecer, tivessem a vontade e a coragem para reverter a decisão, impedindo a sua construção; que ousassem cumprir o estipulado numa bateria de regras e balizas, tão numerosas como inúteis nas mãos dos que deveriam ser os primeiros a zelar pela sua prática.
O facto de esta construção se implantar no coração do centro histórico rodeado de zonas de protecção, de áreas próximas de Monumentos Nacionais, cuja classificação reconhece o ímpar valor identitário para Lisboa e para Portugal, refira-se o castelo de S. Jorge e os vestígios das cercas muralhadas, não parece incomodar os gabinetes próximos do poder.
Alfama não pode ser um santuário congelado no tempo, não deve ser contudo um palco de exibições desmedidas de arquitectos, directores-gerais ou de políticos. Alfama é um bairro único numa capital europeia, deveria ser protegido como o são as coisas raras e insubstituíveis. Uma mostra de singularidade urbana e histórica deste nível irá sofrer um atentado grave que a apeará para sempre desse pódio que é seu por direito e das suas gentes por mérito e fidelidade ao bairro.
Neste contexto, estranha-se o facto de a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) ter deliberadamente ignorado algumas disposições da Lei de Bases do Património que estipula no seu Art. 52, nº 2 que “Nenhuma intervenção relevante, em especial alterações com incidência no volume, natureza, morfologia ou cromatismo que tenham de realizar-se na proximidade de um bem imóvel classificado, ou em vias de classificação, poderá alterar a especificidade arquitectónica da zona ou perturbar significativamente a perspectiva ou contemplação do bem”.
Não se antevê, aqui, qualquer subjectividade. A preocupação do legislador na preservação e salvaguarda do património cultural é clara e objectiva. Querer reinterpretá-la para que se permita uma intervenção arrasadora com a que se prepara é, no mínimo, irregular.
Caso tivesse havido a necessária reflexão sobre as condicionantes que intervenções em bairros como Alfama colocam, outro projecto poderia e deveria ter sido defendido. Não se compreende, também, que a mesma DGPC tenha feito tábua-rasa de algumas das suas atribuições, entre as quais “pronunciar-se sobre o impacto de planos ou grandes projectos e obras (….) e propor medidas correctivas e de minimização que resultem necessárias para a protecção do património cultural.”
Mais se lê no Regulamento do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico de Alfama e da Colina do Castelo “(…) o conjunto edificado é maioritariamente de raiz popular, tendo-se desenvolvido sempre de modo casuístico e improvisado, mas de forma tão anónima e contida pelas dificuldades inerentes às características topográficas (….) que o seu ambiente nunca foi verdadeiramente alterado. Estas características, para além de constituírem testemunho histórico, definem o “sítio”, consubstanciando um ambiente de características únicas, o que leva a reconhecê-lo como núcleo a preservar.” Uma disposição em plena consonância com o que a Carta de Veneza defende, alargando o valor de património ao contexto urbano onde determinado bem se localiza.
Afirma-se no papel o que as oportunidades do momento destroem na prática. O que pensar, então, da paradoxal atitude das entidades responsáveis em relação ao prédio dos anos 70 do Largo Bordalo Pinheiro (ao Chiado) que irá ser demolido, considerando-se que é profundamente dissonante da envolvente e um factor de descontinuidade visual e estética do largo?
As razões que levam ao abate de um deveriam impedir o nascimento do outro. Mas não é este o entendimento da DGPC e da CML. Em Alfama problemas estéticos não se colocam a partir do momento em que a mesma vontade política se aplica em corrigir contestáveis erros passados e em transformar os actuais, mais graves, em virtudes.
Mas nada disto é relevante aos olhos de outra magna autoridade que rege, e tantas vezes mal, os destinos do património histórico de Lisboa. A Comissão de Apreciação da ARU [Área de Reabilitação Urbana] onde têm assento a DGPC e a CML. É esta uma instância todo-poderosa que autoriza processos em zonas históricas consolidadas, retirando o protagonismo deliberativo aos responsáveis máximos dos organismos a que pertencem. Actua como se a Lisboa histórica fosse uma nota de rodapé, insignificante e incómoda.
O que foi criado para impedir a morosidade na apreciação de processos, transformou-se numa passadeira para que tudo se tornasse possível, alterações em obras em curso, autorizações e derrogações a vários artigos da legislação em vigor. Por razões que o bom senso desconhece, as sacrossantas entidades envolvidas, na sua turvada e proverbial visão, optaram por interferir num bairro mais do que emblemático, fazendo-o de uma forma altamente lesiva para a integridade e coerência urbana e histórica de Alfama.
Outras localizações existem para a legítima criação do Museu Judaico de Lisboa, espaços vazios, como a Antiga Alfândega, poderiam ser adaptados para esse fim.
Tornam-se imperativas as perguntas: de que servem relatórios, pareceres, condicionantes, se a opção feita vai contra a letra e o espírito do que se afirma na própria legislação? Alguém mediu o impacto que este projecto terá no desfecho da candidatura de Lisboa-Cidade Global a património mundial? Como podem justificar que o alegado interesse excepcional deste projecto possa suplantar o objectivo e universal interesse de Alfama?
Respostas urgentes que não podem ter como base toda a parafernália burocrática com que as instâncias envolvidas querem lavar as suas consciências e adormecer a opinião pública.
Prepara-se para Alfama uma das piores intervenções da Lisboa do século XXI, aquela que impõe o que as pessoas não desejam, a que age sob os ditames de uma refinada prepotência, a que não reconhece o erro, nele persistindo de forma tão infeliz como leviana.