Rumo ao descaso: casos, acasos e opacidade político-administrativa

Como é que uma máquina fiscal que está munida de um zelo persecutório sobre ínfimos pormenores da vida fiscal dos “normais” contribuintes pode ignorar estas operações ciclópicas?

1. Os casos que têm marcado os tempos mais recentes na actualidade mediática, política e até social parecem mostrar um padrão comum deveras inquietante. Todos eles revelam uma administração pública e um vértice político ou hierárquico estranhamente avessos à assunção de responsabilidade e ao culto da transparência. Mais: os corpos administrativos, com ou sem a conivência das autoridades políticas ou das hierarquias respectivas, parecem equipados para – assim que eclode um “caso” ou até “preventivamente” – ocultarem ou sonegarem registos, arquivos e documentos que aparentemente se mostram imprescindíveis ao apuramento dos factos e das responsabilidades.

2. O último caso a surgir, que a justo título ocupa a actualidade, é o chamado caso das offshores. Aqui, custe a quem custar e doa a quem doer, é preciso esclarecer os factos e determinar se existe (ou se há algumas situações em que exista) responsabilidade administrativa e/ou política. E de nada releva a oportunidade da revelação: antes, durante ou depois de um debate quinzenal, o caso, em si e por si, justifica atenção. Diferente é a demagogia e a insinuação feita pelo primeiro-ministro no dito debate quinzenal, que é intolerável, que o diminui, que “partidariza” o caso e que, mais uma vez, qual sina ou sinal dos tempos, parece sintonizada com as manhas rasteiras do “trumpismo”. Mas não se confunda esta censura política com o que realmente importa.

É preciso perceber por que razão a publicação das transferências para paraísos fiscais foi interrompida e, mais ainda, que explicação cabal e plausível pode ter justificado essa não publicação. É necessário saber como múltiplas transferências desta ordem de grandeza podem ter passado sem um exame feito pela administração fiscal para determinar se todos os impostos haviam sido pagos. Como é que uma máquina fiscal que está munida de um zelo persecutório sobre ínfimos pormenores da vida fiscal dos “normais” contribuintes pode ignorar estas operações ciclópicas? E é importante apurar se, como para aí se escreveu, terão desaparecido dados e registos necessários à efectivação dos controlos em causa, com tudo o que daí decorre.

Pode ou não haver matéria para imputação de responsabilidades de natureza vária, pois as transferências não são ilegais e foram declaradas ao fisco. O assunto tem, no entanto, de ser escrutinado até ao fim. Mesmo sabendo que, por mérito do anterior Governo e da sua política de combate à fraude e à evasão fiscal, os impostos que houver a liquidar poderão ser liquidados e cobrados em tempo. E mesmo louvando a atitude do antigo secretário de Estado, Paulo Núncio, que assumiu a responsabilidade política pela não publicação, o que, não dispensando outras indagações, é coisa rara num país em que a “culpa” (leia-se, a responsabilidade) costuma morrer solteira.

3. Aí estão dois pontos, o da assunção de responsabilidade e o de levar a investigação até ao fim, em que tudo contrasta com o comportamento do PS, do BE e do PCP no caso Caixa. Convém lembrar, aliás: o caso das offshores ou os alardeados sucessos de Centeno não matam ou calam o caso “Caixa” e a tentativa de “ocultação” dos elementos que permitem aferir se o ministro das Finanças mentiu ou não ao Parlamento. É bizarra a forma como os partidos da maioria impediram a comissão de inquérito que já existia de fazer esta indagação e como acabaram a forçar a criação de uma segunda comissão de inquérito. Tais partidos continuam a ameaçar a viabilidade da primeira comissão, tentando tirar utilidade ao cumprimento de uma decisão judicial. Mas é de temer que, nesta segunda, queiram fazer obstrução ao apuramento da verdade, tentando refugiar-se num insustentável conceito de privacidade. As comunicações estabelecidas por um membro do Governo nessa qualidade e a propósito de assuntos públicos não são comunicações privadas, estando, por isso, sujeitas ao regime de todos os documentos públicos. Com efeito, o que pode ser mais público do que os exactos termos da formulação de um acto legislativo? Não deixa de ser irónico que um Governo que anda sempre de “verbo cheio” com os programas Simplex e com a universalização das novas tecnologias na administração, considere que o recurso a essas tecnologias para tratar de matéria pública é afinal uma questão do foro pessoal ou privado.

4. Extremamente grave é a notícia do fim de semana de que, no caso da morte de um bébé no ventre da mãe no Hospital da Guarda, desapareceram os registos cardíacos e outros dados médicos absolutamente indispensáveis à investigação em curso. É evidente que, apesar do terrível desenlace do caso, a situação não se compadece com juízos sumários e apaixonados. Mas a partir do momento em que estamos perante a sonegação ou o extravio destes elementos, tudo se torna chocante e repelente. Como pode a administração do hospital explicar este desenvolvimento, qual o papel da Administração Regional de Saúde e que tem a dizer o ministro da Saúde? Mais uma vez, a opacidade administrativa está a fazer o seu curso. Parece pura matéria social e humana, sem relevo político ou administrativo; mas é a expressão da mesma cultura pública que atravessa os casos Caixa e offshores.

5. Em linha idêntica e correspondente vem o noticiado desaparecimento de dezenas de armas e munições dos corpos da polícia. Mais uma vez, impera a prática do extravio e da ocultação, sem que os responsáveis políticos e administrativos sejam confrontados com as suas responsabilidades directas, indirectas ou últimas. Um desvio deste calibre e tipo merece toda a atenção e é susceptível de criar um justificado estado de alarme. Ignorá-lo, diminuí-lo e desvalorizá-lo é mais uma pedra nesse enorme muro da irresponsabilidade que poucos parecem querer destruir.

NÃO e NÃO

NÃO. Alerta de fome no Sudão do Sul. A comunidade internacional não pode ficar indiferente a este apelo lancinante. A vida de milhões de crianças, mulheres e homens depende de nós no Sudão do Sul e não só. 

NÃO. Donald Trump. O banimento selectivo do acesso de jornalistas à Casa Branca com base numa lista negra de meios de comunicação “hostis” é um sinal altamente perturbador.  

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