A democracia passa bem sem jornalismo

Porém, eu não quero com isto dizer, cinicamente, que então o jornalismo é irrelevante nesta equação: não é.

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niekverlaan/Pixabay

Eu entendo se muita gente chegar a esta crónica, depois de ver o título, perfeitamente furiosa. “Como é que um tipo que dá aulas na universidade a formar jornalistas diz uma coisa destas?! Que fraude! Com professores destes se compreende a vergonha do jornalismo em Portugal!”

Porém, o título tem uma razão de ser. Vou defendê-lo, mas também o vou explicar, e (lá mais para o fim da crónica) até vou mostrar de que forma é que este título pretende demonstrar o meu ponto de vista na prática.

No fim da tarde de terça-feira, a página de Facebook “Os Truques da Imprensa Portuguesa” (OTIP) divulgou um alegado caso de violação da ética jornalística e da violação do sigilo das fontes. Até ao momento, esta quebra grave, a ser verdadeira conforme apresentada, não teve ainda quaisquer consequências profissionais ou deontológicas, nem desmentido.

A gravidade de um acto assim é impossível de quantificar adequadamente. Ao mesmo tempo, a OTIP fala (compreensivelmente, dado a sua missão) da importância do jornalismo para a democracia, e da sua vontade de contribuir para um melhor jornalismo.

Ora, quem cursa jornalismo ou o investiga, sabe que esta teoria — do jornalismo como watchdog (cão-de-guarda) da democracia é, a um tempo, antiga e largamente infundada. Por vários motivos: o jornalismo existe numa relação parcial (mútua) de dependência face aos poderes políticos e às fontes de informação, o jornalismo faz muitas outras coisas que nada têm que ver com manter o controlo sobre o nível democrático das suas sociedades, o jornalismo tem falhado sucessivamente em ter impacto social descortinando informação antes de as coisas correrem mal (e.g.: crise económica de 2008) ou depois (e.g.: Panama Papers, Wikileaks original), e por aí em diante.

Porém, eu não quero com isto dizer, cinicamente, que então o jornalismo é irrelevante nesta equação: não é. Muitas das vezes, o cão-de-guarda funciona não porque mordeu o ladrão, mas porque pode eventualmente vir a fazê-lo. (Daí haver quem coloque a tabuleta “Cuidado com o cão!” mesmo quando não tem cão.) Ainda assim, a pergunta subsiste: e quem vigia o vigilante? Quem investiga os abusos do jornalismo, se o jornalismo está ocupado a (poder) investigar os da política?

É aqui que quero então dar um passo atrás e reiterar o meu título: a democracia passa bem sem o jornalismo. Contradição? Não. O ponto relevante para a democracia não é o jornalismo, mas a função que ele cumpre. Tem sido o caso que a forma que tem acompanhado essa função tem sido a do jornalismo. Nada impede que não venham ou estejam a surgir novas formas de cumprir essas mesmas funções de regulação, vigilância, informação, democratização e pensamento crítico.

O que se tem vindo a manifestar progressivamente é uma defesa do jornalismo (e uma retórica da sua importância para democracia) que assenta na sua redução à forma. Essa noção — do jornalismo-forma — é despicienda para a democracia, especialmente se a função for cumprida por outras formas (e não, não basta ser "social media", "interactivo", ou "digital"). Isto implica a existência de consequências graves para quebras graves da ética jornalística — aquilo que assegura, afinal, a sua função. O que é necessário é um equilíbrio entre forma e função. O meu título, por exemplo: é clickbait.

O que é clickbait? Função pura: a ideia de "chamar à atenção" e "informar" levadas ao extremo (reparem como o meu título cumpre esses dois quesitos, ao mesmo tempo que desvirtua o sentido de ambos, desrespeitando a forma que o título deveria tomar).

Eu não quero defender o jornalismo. Quero defender as ferramentas necessárias para a manutenção da democracia. Espero que o jornalismo reaprenda a equilibrar forma e função.

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