“Everything is about sex, except sex. Sex is about power.” – Oscar Wilde.
Já não me lembro há quantos anos vi esta frase pela primeira vez, mas considero-a um lugar fundamental para entender a cultura da violação — no fundo, a cultura do género. Não é a busca de prazer sexual enquanto instinto básico que nos permite entender o fenómeno e os actos de violação, mas é a análise das relações de poder envolvidas: afinal de contas, a esmagadora maioria dos violadores conhece de antemão as suas vítimas e vice-versa.
Porém, esta frase também ajuda a compreender um outro fenómeno conexo: a relação imputada pela sociedade entre as pessoas sobreviventes de violência sexual e a ideia de verdade. Eu não fui nunca alvo de violência sexual. Mas já tive várias — muitas, demasiadas, porque uma já é demais — amigas minhas (e, sim, também um amigo, mas igualmente um agressor masculino) a virem ter comigo, para me contarem as suas histórias de violência sexual. Porque acharam que eu era a (única) pessoa que não ia ignorar, menosprezar, duvidar, acusar. Mais: já tive amigas a descrever aquilo que poderia ser uma descrição-tipo do que é uma violação, e ao mesmo tempo a dizerem, como que a medo, que “se calhar não foi assim tão grave quanto isso”, “eu até (!) estou bem”.
Deixem-me desambiguar: isto não é uma crónica sobre o quão bom rapaz eu sou. Isto é uma crónica sobre como o nosso mundo é tão assustadoramente cruel e violento que sobreviventes de violência sexual se vêem na posição de ter que recorrer a um homem, que nunca foi alvo disso, como único confidente razoável. Eu não fico secretamente orgulhoso de mim mesmo, eu fico enojado com a forma como a nossa sociedade — machista, patriarcal — ensina todas as pessoas (independentemente do seu género) a des-identificar violação, a des-confiar de sobreviventes, a des-fazer laços de solidariedade. A pessoa que sobrevive a violência sexual tem depois de sobreviver a uma cultura que a trata como mentirosa, como impossível de tocar na Verdade, a não ser quando essa verdade é declarada por terceiros.
Volto ao Wilde: como ouvir uma história de violação não é ‘fazer sexo’, então a nossa cultura reduz essas histórias a sexo. E daí: “O que tinhas vestido?”, “onde andavas?”, “com quem estavas?”, "ad infinitum". Outras formas de dizer, no fundo, “ora diz lá se não querias mesmo sexo?”, “no inconsciente [qual repositório conveniente de tudo o que se quer imputar a outrem] não estava já a verdade sobre o teu desejo de sexo?”. Ao fazer isso, claro, cumpre-se a segunda parte do enunciado de Wilde: o sexo, a verdade sobre o sexo, e o acto de violação em si tornam-se instrumentos da manutenção do sistema de género, do sistema patriarcal. A descrença torna-se silêncio, o silêncio torna-se Verdade, e a Verdade — como de costume — torna-se a inocência do agressor, a culpa da sobrevivente.
Estive no dia 1 de Junho na Praça da Figueira, a manifestar a minha solidariedade no evento “Por TODAS ELAS” – e as histórias que me contaram as minhas amigas não me saíam da cabeça, o tempo todo. As suas próprias tentativas em se desacreditarem a si mesmas; a sua sensação de que pouca gente estaria disposta a acreditar nelas. Já o disse antes: não há política nem direitos humanos sem empatia, sem "sofrer com’" sem primeiro validar a verdade da dor que se nos apresenta. Escutemos essa dor. Escutemo-las. Acreditemos nelas.