Plantações e más notícias. Ou boas
Os encontros entre Merkel e Jean-Claude Juncker sobre a proposta da Comissão têm corrido mal, justamente porque ela recusa ver o futuro do euro inscrito na declaração .
1. Na sexta-feira, o dia correu-me mal. De manhã, na rádio, Nuno Melo tentava minimizar a história dos 10 mil milhões de euros desaparecidos nas brumas dos offshores, pelo caminho mais fácil: atacando o jornal (este) que se prestara aos fretes ao Governo. À noite, pelo acaso de um zapping, ouvi Francisco Louçã elaborar sobre uma notícia da minha autoria, devidamente “plantada” pelo Governo com o objectivo de fazer boa figura em Roma, no Conselho Europeu de 25 de Março, que deverá aprovar uma Declaração sobre o futuro da Europa. Louçã foi à imprensa europeia, não viu nada sobre o assunto e tirou as devidas conclusões. A questão é simples: António Costa não quer aceitar uma Declaração de Roma da qual a chanceler alemã quer retirar qualquer referência ao euro, insistindo em que a conclusão da reforma da zona euro é fundamental para evitar crises futuras de efeitos porventura tão devastadores como aquela que vivemos. A má notícia é que ainda não está garantido que consiga vencer esta batalha. A outra má notícia é que o que escrevi era fácil, ponto de vista jornalístico.
O Conselho Europeu já realizou dois encontros informais, um em Bratislava, outro em La Valleta, para discutir o futuro da Europa depois do Brexit e o conteúdo da Declaração que querem aprovar no 60.º aniversário do Tratado de Roma, renovando o seu compromisso com a integração europeia e dando-lhe uma perspectiva de futuro, depois desta crise monumental que a Europa vive há sete anos e que está longe do fim. Quer ser um sinal de esperança mas ainda pode ser um sinal de divisão e paralisia. O futuro da união monetária é obviamente fundamental. Não constar é, para dizer o mínimo, muito estranho. Ou melhor, corresponde à vontade de Merkel, no momento em que enfrenta as mais difíceis eleições da sua carreira política. Fui acumulando informação sobre as negociações, que incidiam sobre o chamado Livro Branco que a Comissão está a preparar para servir de base à Declaração de Roma. É verdade que o processo está a ser feito no segredo dos deuses, mas é possível ir sabendo alguma coisa, seja em Bruxelas, seja em Lisboa. Quanto ao que está em causa para a Europa e para o nosso país, é público. Bastou-me assistir, na quarta-feira passada, a três horas e meia de intenso debate sobre as reformas que a zona euro ainda precisa, se não quer soçobrar na próxima crise, que decorreu numa sala da Gulbenkian em que cada minuto valeu a pena para perceber o que está em causa. A sessão era pública. Partia de um relatório publicado em Setembro passado da responsabilidade de um grupo de políticos e académicos de várias origens sob a égide da Fundação Notre Europe, cuja leitura é altamente recomendável para se perceber o que está em causa. As intervenções proferidas por António Vitorino (um dos autores) ou por Mário Centeno, já chegariam para perceber com bastante clareza a posição de António Costa. Ou seja, já era possível escrever sobre o assunto, mesmo sem qualquer “plantação” do primeiro-ministro e sem saber se conseguirá vencer a batalha. Louçã dizia que sim e que, por isso, “plantou” a notícia no PÚBLICO para, depois, mostrar como era bom. Para nosso azar, os sinais nem sequer são os melhores. Os encontros entre Merkel e Jean-Claude Juncker sobre a proposta da Comissão têm corrido mal, justamente porque ela recusa ver o futuro do euro inscrito na declaração (ver artigo no destaque do PÚBLICO de sexta-feira). Falta saber o que resultou do seu último encontro com a chanceler, quarta-feira passada. Numa entrevista de apresentação do seu programa económico, Emmanuel Macron dizia justamente que, para convencer Berlim, o melhor que há a fazer é abandonar as grandes tiradas contra a austeridade ou a necessidade de reformar o euro, e apresentar factos. António Costa tem factos para apresentar, que até o comissário Dombrovskis, cultor da austeridade a todo o custo, veio a Lisboa reconhecer.
2. Há ainda um outro vector deste debate que ajuda a complicar as coisas. Berlim e Paris (que não se entendem sobre o euro) entenderam-se sobre outra questão que vai estar presente em Roma: que o futuro da Europa passa por uma integração a várias velocidades. Os franceses sempre foram favoráveis à ideia. Merkel defendia que os (agora) 27 deviam caminhar juntos. Esta cedência, cujos contornos ainda não são conhecidos, traz consigo mais um problema para Portugal e para outros países, mais distantes do centro político e económico da Europa. Merkel defende a necessidade de uma “cooperação estruturada” no domínio da segurança e defesa que os últimos acontecimentos colocaram no topo da agenda europeia (Putin e Trump). Até aqui, tudo bem e Portugal aceita. Desde que, parafraseando Enrico Letta, fique muito bem clarificado que o núcleo político central é definido pela zona euro.
3. Percebe-se, entretanto, que a direita (PSD e PP) esteja cada vez mais nervosa com o rumo do país, disparando em todas as direcções e acusando este e aquele de fazerem fretes ao governo ou porem em causa a democracia. A história dos 10 mil milhões de euros terá ensombrado a história dos SMS. Cristas foi fazer queixa de Ferro Rodrigues a Belém. Não terá tido grande resultado, porque a primeira e a segunda figura do Estado comungam de uma mesma bonomia e boa disposição que é a melhor forma de ficarem todos amigos. Resta, no entanto, um outro motivo de irritação absolutamente imprevisível. Refiro-me ao facto de alguma imprensa europeia de referência estar a olhar para o Governo português como um caso exemplar. Os jornalistas andam à procura de uma tradução exacta para a palavra “geringonça”, inventada por Paulo Portas em boa hora. Querem perceber como é que o PS consegue aliar-se à esquerda radical, cumprir as metas do défice e garantir a estabilidade política. Alguns interrogam-se se Costa não será o salvador do centro-esquerda europeu, que atravessa um péssimo momento. Outros ressalvam que foi sob a sua batuta que o país se tornou “open for business”. Outros ainda, que Lisboa conseguiu provar que havia alternativa à austeridade no quadro da moeda única. Claro que também não escondem as fragilidades que o nosso país mantém, como não poderia deixar de ser. Mas há coisas que os outros europeus não conhecem e, portanto, encontram mais dificuldade em compreender o “fenómeno”. A história da democracia portuguesa vacinou os socialistas, sejam eles mais à direita ou mais à esquerda, imunizando-o de tentações que outros socialistas em outras paragens mantêm. António Costa é pró-europeu sem qualquer estado de alma, não lhe passa pela cabeça contestar a NATO, não vai nacionalizar nada, não persegue os ricos com impostos exacerbados, nem vê a globalização como uma ameaça, mas como uma oportunidade que o país não pode voltar a falhar. Aceita, como se viu, as regras do euro, mesmo que defenda que devem ser revistas de forma a servir todos os países e não apenas alguns. O que pretende a médio prazo é acabar com a “bipolarização imperfeita”, uma batalha que ainda pode vir a falhar. Cedeu à esquerda algumas coisas bastante criticáveis, mas não a pertença do país ao euro, à Europa e à comunidade transatlântica. O resto, infelizmente para alguns do seus colegas europeus, é explicável pelas suas qualidades políticas. E essas não são copiáveis: ou se têm ou não se têm.