Nós com eles, em vez de “nós contra eles”
Portugal ainda não garantiu dar destaque legislativo aos crimes de ódio nem criou um sistema nacional de recolha de dados sobre este tipo de crimes assentes em discriminação.
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” Artigo 1º, Declaração Universal dos Direitos Humanos
O ano de 2016 fechou com espanto. A estratégia cínica de manipulação da informação surtiu efeito, lançou sementes de medo, de ódio, sementes de nós ou eles e por isso tem de ser nós contra eles, porque eles são os culpados de todos os nossos problemas, teve votos, elegeu líderes. O medo é uma arma forte. Pelo medo o mundo retrai-se, odeia, culpa, fecha portas, ergue muros, limita a liberdade, acaba com o acolhimento, trata o outro como menos humano.
Aos líderes eleitos, chamemos-lhe Trump, Orbán, Modi, Erdogan ou Duterte. Tantos nomes podíamos referir ainda. Todos com bandeiras anti-sistema ganharam terreno e adeptos com a retórica de encontrar culpados expiatórios para serem a razão de todos os nossos males, e conseguiram os votos de quem lhes depositou esperanças de segurança e de um mundo em ordem. Um mundo com muros que separam de nós quem precisa de nós.
Já em 2017 estes líderes justificam aquilo que querem fazer, dando resposta ao anseio legítimo de segurança e de uma economia sólida com dedos apontados a supostos culpados que mais não são do que grupos de pessoas vulneráveis, de minorias sem voz, de vítimas das guerras, de vítimas da falta de igualdade, de dignidade, de vítimas da pobreza persistente e causadora de exclusão.
Só há uma forma de parar esse caminho enganador, de fechamento ao que é diferente, de intolerância e de medo de quem não conheço: responder ao ódio com amor. À violência, devolver-se paz. À divisão, devolver-se acolhimento. Face à desunião, marchar-se com união. Proclamar que em vez de sermos “nós contra eles”, temos de ser nós com eles, porque é juntos que o mundo faz sentido.
Em Portugal não estamos a salvo. A nossa realidade é melhor do que a de outros dos 159 países sobre os quais a Amnistia Internacional agora publica o relatório sobre o estado dos direitos humanos no mundo – e nalgumas frentes Portugal é um farol para o mundo –, mas temos caminho para fazer, temos promessas por cumprir.
Portugal ainda não garantiu dar destaque legislativo aos crimes de ódio nem criou um sistema nacional de recolha de dados sobre este tipo de crimes assentes em discriminação. E não desenvolveu ainda as medidas recomendadas em 2013 pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância para dirimir o racismo e a discriminação.
Do mesmo modo, a cultura de exclusão persiste, havendo denúncias de uso desnecessário ou excessivo da força pela polícia e de comunidades de costas voltadas à polícia, não a vendo como protectora, mas como agressora e retaliando também, seja com medo, seja a defender-se, seja com dificuldades de encontro e de conciliação.
Os maus-tratos nas prisões portuguesas são também um sinal de discriminação, quando aquilo que as pessoas em reclusão perderam foi a liberdade, nada mais. Uma sentença não priva alguém da sua dignidade e as condições prisionais, a higiene e a qualidade da alimentação continuam inadequadas a essa humanidade que não pode ser negada. As más condições e os maus-tratos nas prisões não podem integrar o sistema jurídico penal, além de que retardam as funções de prevenção e ressocialização.
O nosso país fez, no entanto, caminho. Em 2016, o Parlamento português reverteu o veto a uma lei que excluía a adopção a casais do mesmo sexo. Aprovou alterações que melhoraram o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva e foi adoptada nova legislação que dá às mulheres acesso à reprodução medicamente assistida – incluindo a fertilização in vitro e outros métodos – independentemente do estado civil ou da orientação sexual. A sociedade é hoje, pela lei, mais justa e igualitária para todas as mulheres, permitindo-lhes que escolham se e quando querem ser mães.
Nas disponibilidades de acolhimento de refugiados recolocados da Grécia e da Itália, Portugal tem estado na linha da frente no panorama da União Europeia – também por desmérito de muitos outros países da Europa que não estão a cumprir a sua parte na partilha de responsabilidade pela crise de refugiados. Portugal foi o quarto país que mais acolheu pelo Mecanismo de Recolocação de Urgência da UE: dos 1742 requerentes de asilo que Portugal se disponibilizou a receber no âmbito do compromisso europeu (com revisão para 1 618), chegaram ao país 781 pessoas até ao final de 2016 – 1 013 até 17 de fevereiro deste ano.
Já ao abrigo do Programa de Reinstalação, foram selecionadas 90 pessoas a serem acolhidas em Portugal entre 2014 e 2016 e, dessas, 65 tinham chegado ao país até ao final do ano passado. Desde o início do Programa de Reinstalação, aliás, chegaram a Portugal 255 refugiados – só 12 durante o ano de 2016. Continuamos aquém de concretizar a promessa de acolher, proteger e oferecer paz, segurança e dignidade a milhares de pessoas, promessa que nos inspirou a acreditar em Portugal como um exemplo de humanidade. E que queremos ver cumprida.
Nunca foram governos com narrativas de exclusão a contribuir para um mundo com mais direitos humanos. A História já nos mostrou, e mais do que uma vez, as consequências da retórica tóxica e divisiva. Não queremos que se repitam. E não podemos esquecer também a outra lição que a História nos ensinou: sempre que líderes tentam dividir, demonizar e reprimir, há sempre pessoas determinadas em barrar-lhes o caminho. Não podemos ficar em silêncio, não podemos sair do caminho. Construirmos, juntos, um movimento sustentável de mudança começa com este acto simples de desafio – nunca foi tão importante erguermo-nos juntos e barrar o caminho ao ódio e ao medo.
À violência, ergamos a voz da paz; ao ódio, respondamos com amor; perante a divisão, abramos os braços do acolhimento. À escuridão, acendamos-lhe uma vela.