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Maldita Lituânia

Portugal continua nos cuidados intensivos. Felizmente está melhor, mas ainda não se curou.

Nestes dias de muito boas notícias (o desemprego em baixa, o crescimento em alta, o défice finalmente domado na casa dos 2%), os desmancha-prazeres do Expresso deram-se ao desplante de titular na primeira página do último sábado: “PIB: Lituânia ultrapassa Portugal em 2017”. No actual clima de ranço e ódio que abunda nas redes sociais, quando ter uma opinião é um risco que ou leva à condenação por serventia ao Governo ou submissão à oposição, a notícia de desempenhos como o da Lituânia servirá apenas de festa para alguns e de desdém para outros tantos. Mas, esqueçamos por um momento esse país a preto e branco que a devoção acéfala ou o ódio bafiento à “geringonça” suscita e comparemos os resultados da frente económica com os resultados dos outros. Não, não é para desesperar: é apenas para firmar os pés na terra e evitar o embandeiramento em arco que há tão pouco tempo nos levou ao limiar do precipício.  

Comecemos pelo princípio, pelos dados da economia e das finanças, para esclarecer o óbvio: Portugal vive um dos seus mais esperançosos períodos da última década. Os resultados que os ministros da Economia, das Finanças ou o primeiro-ministro apresentaram ficaram muito para lá das melhores expectativas. Raramente houve igual fundamento para um Governo abrir o peito às balas da oposição e reclamar louros. Negar é realidade só se faz por ressabiamento, fundamentalismo partidário ou ideológico ou por mau perder. Diga-se o que se disser (e nesta coluna disseram-se muitas coisas sobre os limites do modelo do Governo para a economia), António Costa, Mário Centeno e Manuel Caldeira Cabral estão em alta. Não apenas por causa dos indicadores fechados em 2016 mas, principalmente, porque em causa está uma tendência de aceleração no crescimento, no emprego e no investimento que podem tornar 2017 ainda mais optimista.

Só que fazer destes dados uma festa que ilustra a genialidade do Governo e atesta a incompetência da oposição é como comer batatas com batatas e exibir no rosto uma satisfação pantagruélica. Os resultados, principalmente o do crescimento de 1.4%, só são bons porque deixámos de ter expectativas. Perante os erros da troika, a vacuidade do anterior governo e a fragilidade e inconsistência programática do actual, face à dívida, ao rating da República à condição da Europa e do Mundo, limitamo-nos trocar estados de alma ao ritmo dos resultados trimestrais. Há 30 anos jurávamos a pés juntos que haveríamos de ser prósperos e modernos como os alemães; agora, nem sequer somos capazes de ser tão ricos como a Lituânia, ou Malta, ou Chipre, ou a Eslováquia, ou a República Checa. Ficámos para trás, cada vez mais perto da cauda da Europa.

Os resultados só são bons porque contrariam o pessimismo e a falta de confiança que uma boa parte do país depositou no Governo. E são-no também porque depois de 2000 nos viciámos no discurso da sobrevivência, ou da resistência, e alimentámos o vício com doses industriais de desesperança. Foram-nos dizendo que o problema se resolveria com tempo, com dádivas da Europa, com o brilho da nova geração de crânios ou de empresas e muitas reacções aos novos indicadores da economia parecem legitimar essa expectativa sobre a existência de milagres. Com excepção dos anos da troika, em que o sobressalto fez disparar as exportações, reinventou a agricultura e nos levou a desprezar a protecção aos “campeões nacionais” designados na secretária de Ricardo Salgado, José Sócrates e quejandos, gostamos de viver na modorra. O Governo de António Costa, com o floreado do virar da página é de alguma forma o regresso a essa vida calma, previsível, onde crescer 1.4% até é bom. O mundo, infelizmente, não é bem assim.

A Lituânia passou entre 2008 e 2010 por um ajustamento duríssimo, com reduções dos salários públicos de 20 a 30%, com cortes nas pensões acima de 10%, com toda a coreografia dramática das exigências do FMI (pobreza, desemprego, desesperança) e se está hoje onde está é porque o sacrifício valeu a pena. O mesmo aconteceu na Irlanda. Ou, em parte, na Espanha. Se Portugal continua a ter ainda hoje um PIB abaixo do que registava em 2009, se cresce a ritmo de caracol, se a pobreza se mantém na ordem dos 20% da população e se continua a ser ultrapassado pelo cão e o gato é porque o sacrifício não valeu a pena. Afinal, Portugal não deixou de ser um paraíso para as corporações patrocinadas pelo Estado. Não deixou de ser condescendente com ministros que fogem à verdade. Permite fugas de dez mil milhões de euros para os off-shores perante a passividade das autoridades tributárias. Subalterniza a matemática e o português nas escolas. Dá horários de privilégio a funcionários públicos. Isenta os restaurantes da equidade fiscal.

É este nível de abdicação que ora legitima o quanto pior melhor do PSD e do CDS, ora o discurso triunfal dos que vêm na travagem do défice ou na aceleração da economia uma Aljubarrota dos tempos modernos. Se por um instante desviarmos o olhar de Costa, de Passos ou de Assunção Cristas e olharmos para os bálticos havemos de perceber o ridículo da festa. Se a teoria do “virar de página da austeridade” era arriscada e perigosa (e falsa), o mesmo risco e perigo poderá acontecer se o “optimismo crónico e ligeiramente irritante” do primeiro-ministro (a expressão é do Presidente da República), o levar a decretar o estado de graça e o fim da crise. Cair na tentação de crer que tudo corre sobre rodas, que o Governo faz milagres com o beneplácito do Bloco e do PCP, que Deus é português, que a coisa se resolve, que os povos, como os indivíduos ou as famílias, não são sujeitos a tempos de reequilíbrio e de luta árdua, será uma forma de varrer o lixo para debaixo do tapete.

Com a dívida pública nos 130% e a dos privados nos 181% do PIB, com a falta crónica de capital para investir, com o rating no lixo e os juros condicionados pela acção do BCE, Portugal continua nos cuidados intensivos. Não é alarmismo, é pura verdade: cuidados intensivos. Felizmente está melhor, mas ainda não se curou. Um diagnóstico optimista pode ser bom de ouvir para o paciente, mas jamais o levará a seguir a dureza da cura. Como se sabe (e os últimos anos confirmaram), o país é muito melhor quando age sob pressão, quando tem de ir para a Índia ou para o Brasil. Quando relaxa com as especiarias, o ouro, os fundos europeus ou discursos delicodoces torna-se tão mole que até os Bálticos que há pouco tempo saíram da tirania colectivista o ultrapassam. 

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