Dos factos alternativos aos erros de percepção
Enquanto Trump se afunda, todos os dias, nos «factos alternativos» da sua Administração, criando um caos sem precedentes na Casa Branca, ou François Fillon vê a sua candidatura à presidência francesa cada vez mais comprometida pela novela dos empregos fictícios atribuídos a familiares e pagos pelo erário público (ele que se apresentava como um homem austero, íntegro, católico, pronto para sanear os desmandos nacionais), a vida política portuguesa parece suspensa do «eventual erro de percepção mútuo» entre o ministro das Finanças Mário Centeno e o ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD) António Domingues.
Se cada caso é um caso, à escala de cada país, pode dizer-se que estes três exemplos reflectem um preocupante traço comum da crise de credibilidade das democracias. Os conflitos de interesses, a dissimulação, a duplicidade dos comportamentos e o abuso da credulidade pública, a falta de clareza e rigor ético formam uma massa tóxica que corrói a confiança entre políticos e cidadãos. Não se trata, longe disso, de uma novidade, e deve mesmo dizer-se que só nas democracias é possível questionar abertamente esses desvios e desvarios. Mas nunca como agora a exigência de escrutínio e transparência da vida pública se fez tanto sentir – uma exigência que se tornou ainda mais premente depois da eleição de Trump e dos seus ataques boçais às instituições e valores democráticos. Não por acaso, também, nunca como agora o papel de uma imprensa livre se terá mostrado tão pertinente (veja-se a doentia obsessão que ela constitui para Trump, Putin e outros ditadores vocacionados para a intoxicação mediática).
Evidentemente, o caso Mário Centeno/António Domingues é de natureza mais pacífica, mas o seu significado nem por isso deixa de ser relevante à escala portuguesa, até pela dimensão invulgar que adquiriu e pelas reacções que vem suscitando. Além disso, um dos seus pontos mais estranhos é o facto de se ter prolongado durante tanto tempo, com uma acumulação incompreensível de trapalhadas sem fim.
Há já longas semanas manifestei aqui a minha perplexidade não apenas com o comportamento de Centeno e Domingues mas também do primeiro-ministro (o título da crónica era, aliás, «A insustentável leveza de António Costa»). Poderia escrever praticamente o mesmo, com algumas actualizações pontuais. Mas o que entretanto se foi sabendo só agravou a situação para Centeno, para o Governo e até para o Presidente da República, refém dos seus impulsos intervencionistas para além de qualquer normalidade institucional. E que um gabinete de advogados tenha redigido um decreto-lei para isentar a então Administração da CGD de entregar a declaração de património e rendimentos ao Tribunal Constitucional constitui uma enormidade típica de uma república das bananas ou uma Administração trumpista.
Evidentemente que a oposição de direita, sem ideias e sem programa, se tem aproveitado do caso com crispado oportunismo, levando os partidos da maioria e alguns comentadores a manifestar-se contra a divulgação das mensagens trocadas entre Domingues e Centeno (porque poderia prejudicar a imagem externa do país e a recapitalização da CGD). Mesmo assim, não é tolerável que as regras do serviço público possam ser subvertidas para benefício de alguém que não quer submeter-se a elas. E não é admissível que um ministro das Finanças conceda um estatuto régio a um banqueiro, por muito competente que seja, para administrar um banco público, como se o Estado não tivesse alternativa de escolha (a não ser, porventura, como desejaria o anterior Governo, a de transformar esse banco público num banco privado).
Não, simplesmente não pode ser. Um ministro das Finanças não pode ficar refém de suspeitas de favorecimento ou erros de percepção mútuos com um interlocutor que lhe impõe condições inaceitáveis à luz dos princípios legais e éticos vigentes. Não há factos alternativos, apenas factos.