Em defesa dos cuidados paliativos
A sedação paliativa deverá ser realizada por quem tem competência e treino para tal, nunca com a intenção de tirar a vida.
Ciclicamente, quase sempre em torno do debate da eutanásia, assistimos a declarações públicas — nomeadamente nos media — por parte de pessoas com suposta responsabilidade profissional e cívica, sobre a prática dos cuidados paliativos e sobre a realização da sedação paliativa. Lamentamos que se lancem afirmações que são falsas, facilmente rebatíveis pela evidência científica e pela prática. Lamentamos sobretudo que se queira assim confundir e desinformar os portugueses.
Diz-se que a sedação paliativa é o mesmo que a eutanásia, diz-se que ela apressa a morte e é irreversível, diz-se que a maioria dos doentes nos cuidados paliativos morre obnibulado, “zombie”. Falará agora quem conhece de perto e trabalha na realidade dos cuidados paliativos há muitos anos, com milhares de doentes tratados e acompanhados, dentro e fora do SNS.
A sedação paliativa (chamá-la “terminal” é errado!) é uma intervenção bem fundamentada e estudada, com indicações médicas precisas e procedimentos recomendados. Não é uma medida universal, é aplicada nos sintomas que não cedem às medidas terapêuticas de primeira linha. Faz-se recorrendo a sedativos e não à morfina. Deverá ser realizada por quem tem competência e treino para tal, nunca com a intenção de tirar a vida. Não deve ser confundida com más práticas de fim de vida (doses indevidas de morfina, por exemplo), que não cumpram as recomendações rigorosas para esta intervenção. A sedação não se aplica à larga maioria dos doentes que recebem cuidados paliativos de qualidade e são vários os estudos científicos credíveis que desmistificam a ideia errada de que a sedação paliativa antecipa a morte do doente. E porque é de ciência e não de opinião que se trata, convirá a esse respeito estudar e ler, por exemplo, Maltoni M, Scarpib E, Nannib O; Palliative sedation for intolerable suffering; Curr Opin Oncol 2014; 26:389-394.
O que se lamenta mais é o profundo desconhecimento técnico e científico da realidade, do processo de morrer e dos cuidados paliativos, prestados sempre por profissionais qualificados e com a devida competência para tal (não falamos de sucedâneos). É bastante grave, para não dizer mais, pelo desconhecimento que revela e pela irresponsabilidade que comporta, a forma infeliz e enganosa como se sugere que os cuidados paliativos “arrastam para um estado vegetativo” e deixam as pessoas “num estado obnibulado”.
Somos médicos/as, trabalhamos com ciência e evidência, e o tema dos cuidados paliativos não é uma questão de fé ou crença, como por vezes se sugere. É de cuidados de saúde que falamos, uma intervenção técnica global no sofrimento dos doentes graves e em fim de vida, que não pode ser distorcida em nome do “vale tudo”, e um tema do maior interesse para a sociedade, até porque a maioria dos portugueses continua a não ter acesso a eles.
Exige-se mais responsabilidade e verdade nas afirmações que se difundem, quando se pretende emitir opinião. É preciso conhecer bem a realidade que se comenta e, sobretudo, ter mais respeito pelos doentes tratados em cuidados paliativos, pelas suas famílias e, já agora, pelos profissionais que efectivamente os acompanham.
Ana Bernardo (Azeitão); Catarina Amorim (Lisboa); Cristina Galvão (Beja); Edna Gonçalves (Porto); Fátima Teixeira (Tavira); Hugo Domingos (Lisboa); Isabel Duque (Castelo Branco); Isabel Galriça Neto (Lisboa); José Eduardo Oliveira (Porto); Licínia Araújo (Funchal); Rita Abril (Lisboa); Rosário Vidal (Ponta Delgada); Rui Carneiro (Porto); Vilma Passos (Funchal)