"Há quem não queira morrer como um zombie"

"Dizer às pessoas que têm sempre a alternativa de se suicidar, como alguns fazem, é uma bestialidade, primarismo, desumanidade, refere João Semedo, médico e ex-coordenador do BE.

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João Semedo diz que não fez sentido compara a eutanásia ao homicídio. Paulo Pimenta

A maior parte dos portugueses morre nos hospitais, quando, segundo todos os estudos, preferiria morrer em casa. Como é que se morre nos hospitais?
A morte nos hospitais mudou muito toda a liturgia da morte. A forma como se morre nos hospitais é muito variada, tem a ver com a idade, a doença que leva à morte, o tipo de serviço em que está internado.

Também depende do facto de haver ou não cuidados paliativos nesse hospital.
Sim, nos cuidados paliativos há uma certa previsão e um certo planeamento, vai-se carregando na analgesia, na sedação e, à medida que se vai fazendo isso, está-se a acelerar a chegada da morte.

Os especialistas em cuidados paliativos dizem que não é assim que as coisas se processam.
Isso está mais do que demonstrado, há dezenas de estudos científicos e clínicos que o provam. Mas o sofrimento não é apenas a dor física, há outras formas de sofrimento. Há a degradação física, a perda de faculdades, a dependência crescente, as deformidades. É do sofrimento que a necessidade da eutanásia surge. Para muitas das circunstâncias os cuidados paliativos não têm resposta. Mesmo que o acesso aos paliativos seja generalizado, haverá sempre quem não pretenda morrer assim. Há quem não queira morrer como um zombie. Há quem queira ter a consciência de que se despede da vida mantendo grande parte do que foram as suas características. 

Foi isso que sentiu quando esteve doente?
Nunca estive tão próximo disso, nunca foi problema que se me tenha colocado. Mas, quando vemos a morte perto, é quando mais gostamos de viver. Portanto, a ideia de que uma pessoa numa situação terminal pede irreflectidamente para morrer é completamente falsa. Há doenças em que a pessoa sofre com a doença e com o tratamento, mas o sofrimento é diferente se tem a perspectiva de se curar. 

Para isso não será necessário alterar a Constituição, que, no artigo 24.º, frisa que a vida humana é inviolável?
Já ouvi constitucionalistas a dizer uma coisa e outra. Essa discussão só serve para desviar a atenção do que é importante.

Há poucas pessoas com testamento vital em Portugal. Porquê?
Por várias razões. Primeiro: ninguém pensa na morte. Segundo, não é fácil fazer um testamento vital, perceber o que ali está escrito e que consequências tem determinada resposta. Terceiro: não há no Serviço Nacional de Saúde nem na sociedade nenhum esforço, dinâmica de informação, de esclarecimento para o testamento vital. E há coisas que demoram tempo a sedimentar.

Tem dito que os argumentos usados por algumas pessoas neste debate são os argumentos da mentira e do medo contra a razão.
Quando uma pessoa equipara a eutanásia de um doente que reiteradamente pediu para morrer a um homicídio acho que está a mentir. É a mentira de quem quer construir uma narrativa de terror e que impede uma avaliação objectiva, racional de como uma coisa tão natural como esta. Dizer às pessoas que têm sempre a alternativa de se suicidar, como alguns fazem, é uma bestialidade, primarismo, desumanidade. O que também não é bom é ouvir bastonários da Ordem dos Médicos, com tanta leviandade e superficialidade, a querer-nos convencer de que a relação médico doente só tem um pólo. É preciso respeitar o direito do doente à autonomia. A auto-determinação do cidadão é um princípio constitucional consagrado nos estatutos da Ordem. Esta lei tornará a vida e a actividade dos profissionais de saúde mais fácil, mais humana e a sociedade mais democrática, plural, tolerante. É um grande progresso. Não conheço nada que se tenha imposto ao mundo velho sem combate, luta, persistência. O velho reage sempre ao novo e o novo não tem outra alternativa se não batalhar.

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