A conspiração contra a América
Não é bizarro, perguntei a Roth, que a maior democracia do mundo dependa de um sistema de separação de poderes tão improvável?
No dia da tomada de posse de Donald Trump conheci Philip Roth. Foi uma experiência estranha passar, com o nosso amigo comum Adam Gopnik, o fim de um dia louco na companhia do escritor que, há 13 anos, em A Conspiração contra a América (Dom Quixote, 2005), descrevia exactamente o pesadelo arrepiante em que os EUA entraram.
Encontrámo-nos no seu apartamento forrado a livros de Manhattan, para onde se mudou depois de ter anunciado que se reformava da escrita. Ttinha passado a manhã desse dia de 20 de Janeiro em frente à televisão. Tal como muitos americanos, mas talvez com um grau de estupefacção suplementar, viu as imagens chocantes do bebé crescido que, com grande estardalhaço, pequenos punhos erguidos, insultava as elites de Washington, o povo americano, o mundo inteiro.
Falámos da outra criança, a verdadeira, o pequeno Barron Trump, vestido como príncipe de comédia e deslocado como se fosse um pacote, ou um troféu, entre os pódios onde se celebrou o triunfo de César seu pai.
Roth tem, como se sabe, um carinho particular pelas heroínas literárias, por isso detivemo-nos no caso de Melania, a first lady, com o seu ar estranhamente ausente durante a cerimónia — lúcida? Informada? Pressentindo, melhor do que todos nós, as catástrofes que se estão a preparar? Ou será apenas a história da mais bonita rapariga do subúrbio que um adolescente ávido convidou para dançar e aperta de mais?
Roth falou também das forças que, no seu romance ou mais exactamente no novo romance que o mundo está a escrever, e de que ele, conhecedor, extrai as linhas cómicas e trágicas, podem resistir a esta maré negra de vulgaridade e de violência. 1. O povo soberano que desceu em massa às ruas das grandes cidades do país, lembrando que em termos de votos totais foi ele, e não Trump, que ganhou as eleições. 2. Os republicanos que sabem que entre Trump, o antigo democrata que se tornou populista, e o grand old party, que ele usou como trampolim, se trava uma luta de morte. 3. A CIA, cuja sede Trump visitou no dia após a posse, sem dispensar uma palavra aos 117 agentes mortos em missão, cujos nomes estão gravados na parede mesmo por trás dele, quando se entregou a um exercício de auto-satisfação pueril e grotesco sobre o número de apoiantes que tinham chegado a Washington para celebrar [a tomada de posse]. 4. Os responsáveis do FBI que não lhe perdoarão ter duvidado da sua probidade no caso da pirataria informática por parte dos serviços secretos russos para influenciar os resultados da campanha a seu favor.
Não é bizarro, perguntei a Roth, que a maior democracia do mundo dependa de um sistema de separação de poderes tão improvável? O que é bizarro, responde-me ele, com uma grande gargalhada, inclinando a cabeça para trás, é o estado de insurreição em suspenso, pelo qual é responsável este Presidente mal eleito e para o qual se pode prever um mandato ainda mais curto do que o do herói do seu romance.
Claro que as situações não são comparáveis. O romance decorre em 1940.
Retrata Charles Lindbergh, o herói aviador com simpattias nazis, que ganha por pouco ao candidato favorito da época, F. D. Roosevelt. Lindbergh era um anti-semita assumido.
Mas ao mesmo tempo....
Esta retórica mussoliniana...
E depois há o slogan "América primeiro", surpreendendo que nos EUA não se tenha agitado o coração de gente com um pouco de cultura política, independentemente das simpatias políticas – porque era este o slogan oficial dos nazis americanos no tempo de Charles Lindbergh. Era a resposta aos que queriam que a América resistisse à Alemanha de Hitler. Foi em seu nome que foram denunciados os "judeus belicistas". E foi este slogan que Trump repetiu na escadaria do Capitólio e fez com que David Duke, antigo líder do Klu Klux Klan, soltasse um estrondoso: "Conseguimos!"
Donald Trump sabe tudo isso e, quando lho apontam, responde que está a olhar "para o futuro", não "para o passado".
Mas o mundo divide-se entre os niilistas sem memória e os que sabem que as línguas têm uma história. O jogo faz-se entre os que crêem que se pode, sem mal, repetir 15 vezes num discurso o slogan dos supremacistas brancos e os que sabem que a genealogia das palavras, quando negada, vinga-se.
Trump, um pseudo-aliado dos maiores demagogos do nosso tempo, está a ser rejeitado em todo o mundo. Mas consideremos esta estranha e sinistra particularidade: o mais impopular Presidente da América visitou recentemente Jerusalém e criou um afinidade com aqueles que o seu predecessor na ficção considerava sub-humanos.
E há o seu slogan "América primeiro". É surpreendente que estas palavras não tenham dado a volta ao estômago a todo o espectro político americano.
Possam os destinatários desta súbita solicitude protegerem-se deste seu novo amigo como fazem em relação aos seus inimigos.
Possam nunca esquecer que o destino de Israel é uma coisa demasiado séria para que um aventureiro impulsivo e inculto o use para demonstrar a sua autoridade ou o seu suposto talento para fazer negócios.
E que sejam poupados ao dilema, descrito no romance de Roth, de ter de escolher entre dois destinos igualmente funestos: o da vítima, Winchell, e do refém, Bengelsdorf.
A America não leu Philip Roth tanto quanto devia.
O mundo de Roth ou o de Trump: essa é a questão.